
Quantas versões de histórias tradicionais (contos de fadas, fábulas, lendas) você conhece? Esses contos originários da tradição oral já inspiraram e seguem inspirando outras histórias. Saci e Iara, por exemplo, são personagens de O Sítio do Picapau Amarelo. Chapeuzinho Vermelho, para citar outro exemplo, já ganhou inúmeras cores (Chapeuzinho Amarelo, Chapeuzinhos coloridos etc.) e variações, assim como outras personagens de contos de fadas.
Essa inspiração não se restringe à literatura. Os contos populares são temas de filmes, desenhos animados, peças teatrais.
Em geral, essas novas versões são bem-humoradas, trazem uma crítica às versões originais ou tentam dar um ar politicamente correto às narrativas, cujo conteúdo, por vezes, não se adequa mais aos padrões atuais.
Nesse meio, encontramos recontos e releituras. Segundo Beth Cardoso, especialista no assunto, em texto publicado no Blog das Letrinhas, o reconto mantém quase toda a estrutura da narrativa original. Já a releitura é mais livre: embora se baseie no conto original, cria uma narrativa diferente.
A seguir, apresento duas obras baseadas em histórias tradicionais: uma releitura e um reconto, ambas criadas por escritores piauienses.
1. Crispim: o menino do rio

Uma lenda fez parte dos meus primeiros anos escolares em Teresina e ainda vive em minha memória: o temível Cabeça de Cuia, o ser monstruoso que vaga às margens dos rios Parnaíba e Poti.
Quando ainda não era um monstro, o Cabeça de Cuia chamava-se Crispim. Na história tradicional, ele vive com a mãe e sai todo dia para pescar. Certa vez, depois de um dia ruim de pescaria, volta para casa e se irrita com a mãe ao encontrar sopa de osso para o jantar. Tomado pela raiva, arremessa o osso na mulher, o que a leva a óbito. Antes de morrer, porém, ela lhe joga uma praga, condenando o filho a perambular para sempre sozinho, e com uma aparência assustadora, a menos que ataque sete Marias virgens — único modo de quebrar a maldição.
Trágico, não é?
Célia Revilândia, a autora de Crispim: o menino do rio (Edição da Autora, 2020), concorda. Professora da educação infantil e residente em Teresina, ela sofria ao ter que abordar a lenda em todo mês de agosto, mês dedicado ao folclore brasileiro. Então resolveu reescrever a história.
Estive com ela na 2ª Feira Literária de Barra Grande, em Cajueiro da Praia, Piauí, que ocorreu entre os dias 29 de julho e 1º de agosto de 2023, e a escutei contar a história do livro e a sua motivação para escrevê-lo.
Na versão da autora, Crispim mora com a mãe e as sete irmãs de nome Maria. A mãe é quem sai para pescar, mas Crispim realiza todo o serviço da casa sem a ajuda das irmãs. Um dia, a mãe retorna com apenas um osso e promete preparar uma sopa com esse ingrediente. Zangado, Crispim joga o osso para longe; este retorna e acerta o menino, o que faz a sua cabeça crescer e esquentar.
Com a cabeça enorme e quente, Crispim entra no rio e descobre que a sua cabeça não pararia de crescer se saísse da água.
A cabeça do Crispim começou (blubt) a crescer (blubt), crescer (blubt) e crescer (blubt)! — Socorro, gritou Crispim! Me acudam! Minha cabeça está crescendo!
Célia Revilândia encontrou soluções criativas para a tragicidade da lenda. As sete Marias agora são parte da família de Crispim. O menino ainda tem seu momento de fúria e é condenado àquele aspecto tenebroso. No entanto, não há morte nem praga nem a solidão do Cabeça de Cuia, pois as irmãs e, sobretudo, a mãe aparecem para lhe fazer companhia.
O osso, antes uma arma, transforma-se em um instrumento de preservação da natureza. Com ele, Crispim leva os peixinhos para longe dos pescadores sem consciência. O Cabeça de Cuia usa sua situação de forma positiva, tornando-se protetor das águas dos rios, que agora são sua morada.
A história é engraçada. Meu filho dá boas risadas ao ouvi-la. Eu e uma plateia também nos divertimos ao acompanhar a narração da autora.
A lenda do Cabeça de Cuia já ganhou outras versões, incluindo uma criada por mim — que ainda não foi publicada. A maioria delas são histórias de terror e, ao contrário de Crispim: o menino do rio, não se destina a crianças.
2. A rolinha e a raposa

De forma oposta a Crispim: o menino do rio, A rolinha e a raposa: fábula do Piauí de tradições africanas e indígenas (Edição do Autor, 2022) não surgiu para alterar a história em que se baseia. Como o próprio autor do texto, Elio Ferreira, relata no início da obra, a história fez parte de sua infância, quando ele e outras crianças se encantavam com as narrativas contadas por pessoas negras e descendentes de indígenas, homens e mulheres mais velhos de sua família ou de sua vizinhança. Seu objetivo com o livro, portanto, foi compartilhar essa história com outras pessoas.
O livro reconta a fábula de mesmo nome, um conto tradicional brasileiro, de origem indígena, que foi recolhido e registrado por Luís Câmara Cascudo na obra Contos de animais (Global Editora, 2012).
Na narrativa, a raposa pede à rolinha que lhe entregue um filhote. Diante da recusa da ave, a raposa ameaça subir e comer todos. Com medo, a rolinha então entrega um dos filhos para salvar os outros.
O cancão é quem lhe abre os olhos: raposa não sobe em árvores, ele diz. Com isso, na segunda investida do mamífero, a rolinha a enfrenta e se nega a entregar mais um filhote.
Então, suba, Camarada Raposa, Suba que eu quero ver!
Furiosa, a raposa tenta se vingar do cancão, que se meteu em seus planos e atrapalhou seu jantar. Outro personagem aparece, o bem-te-vi, e avisa o cancão das intenções da raposa.
Aqui vemos a estrutura comum nas fábulas: a personificação dos animais. Nessas histórias, eles conversam, têm sentimentos, características e reações humanas.
A rolinha se deixa levar pelo temor, que a impede de perceber que a raposa não pode cumprir sua ameaça. O cancão, sempre alerta, e não tomado pela emoção, enxerga o absurdo. Mas a rolinha retribui a ajuda do camarada quando ele se encontra em perigo.
A versão de Elio Ferreira e Amaral combina um texto ágil e poético com ilustrações originais. A forma como os pássaros falam, com as onomatopeias que atribuímos a eles e com expressões que se aproximam desses sons, confere naturalidade e humor aos diálogos, além de favorecer a narração da história e exaltar a oralidade — oralidade esta que originou o conto.
Bem-te-vi! Bem-te-vi! Não mexa aí! Não mexa aí!
Também encontrei Elio Ferreira na 2ª Feira Literária de Barra Grande. Lá acompanhei sua palestra sobre outro tema: a carta escrita em 1770 por Esperança Garcia, uma mulher negra e escravizada, ao governador da Capitania do Piauí para denunciar a violência que sofria.
***
E você? Já conhecia esses títulos?
Deixe seu comentário