24 de fevereiro de 2023

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[Resenha] Corpo desfeito

Por Jarid Arraes

  • Título Original: Corpo desfeito
  • Gênero do Livro: Romance
  • Editora: Alfaguara
  • Ano de Publicação: 2022
  • Número de Páginas: 128
Sinopse: Amanda tem doze anos e acaba de perder a mãe. Sem conhecer o pai, toda sua esperança de conforto se volta para a avó, pessoa dura e intolerante, que já sofreu muito no passado. Por pouco mais de um ano, acompanhamos a vida de Amanda se ajustando às demandas cada vez mais extremas de Marlene: não fale com ninguém, não saia de casa, não use roupas chamativas, não tome banho de porta fechada.

Cerceando progressivamente o dia a dia da jovem, a avó constrói um lar que muito se assemelha a uma prisão seja para o corpo de Amanda, seja para a própria mente. Sob o pretexto de visões religiosas, as atitudes de Marlene levam a neta ao limite, mesmo que não consigam impedir que o primeiro amor brote no coração da menina.

Neste romance de estreia, Jarid Arraes mergulha fundo nas consequências do abuso físico e psicológico de crianças. Com uma prosa ágil e habilmente construída, ela nos mostra como essas marcas são criadas, e também como é possível escapar delas.
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Como se imagina a vida de uma menina de doze anos? Cercada do carinho da família, dedicada apenas aos estudos, às brincadeiras, às amizades e até a um despertar para a vida adulta. Bem, deveria ser assim. Sei que essa não é a realidade de todas as meninas, como não é a de Amanda, a protagonista do romance Corpo desfeito, da jovem escritora Jarid Arraes.

Reconhecida poeta e cordelista, Jarid é um dos nomes da nova geração de escritores e escritoras do Brasil, uma representante nordestina que vem despontando no meio literário brasileiro.

Corpo desfeito é o seu primeiro romance, lançado em 2022, pela editora Alfaguara, mas a autora também publicou As lendas de Dandara (Editora da Cultura, 2016), o livro de poesia Um buraco com meu nome (Jandaíra, 2018), a coletânea de contos Redemoinho em dia quente (Alfaguara, 2019) — vencedora do Prêmio APCA e do Prêmio Biblioteca Nacional — e Heroínas negras brasileiras em 15 cordéis (Seguinte, 2020).

Amanda não conheceu seu pai. A mãe contou que ele não quis fazer parte de sua vida e que era isso o que lhe bastava saber. A jovem mora no interior do Ceará (terra natal da escritora) com a mãe, Fabiana, que cumpre uma tripla jornada de trabalho e não tem tempo para outra coisa; a avó rígida e fria chamada Marlene; e o avô Jorge, que some por dias e, ao aparecer, agride a família por culpa da embriaguez e de sua maldade própria.

Apesar do contorno borrado que aquela ideia de pai tinha, eu sentia que não precisava de outra pessoa. Precisar é palavra braba que não se pode gastar com qualquer gente, ou ela se vira contra você. Mas mainha, sim, era caso de precisão. O pão e a água da nossa casa. Tanto eu quanto vó dependíamos dela (p. 14).

A menina aproveita as raras oportunidades ao lado da mãe, nem que seja para observá-la costurar. É ela, Amanda, quem faz todo o serviço da casa, a não ser nos finais de semana, quando a mãe assume essas tarefas. E de vez em quando experimenta o pavor do retorno do avô, cruel com a esposa e a filha. Seu alento é a amizade de Jéssica, que a escuta e acolhe, embora viva uma realidade diferente e não conheça muito bem o que se passa na casa de Amanda.

Quase desamparada, Amanda vai levando a vida, até que sua mãe morre de maneira trágica. A partir de então, a avó muda de indiferente para autoritária e impõe regras absurdas à menina. Sua desculpa é que Fabiana, que teria virado santa, aparece em seus sonhos e lhe dá orientações para direcionar o comportamento da neta.

Os dias de Amanda então se tornam infernais. Além de assumir o trabalho doméstico por completo, agora perde a liberdade, inclusive para tomar banho em paz. Não pode mais ver Jéssica. Trancada na prisão que virou sua casa (e sua mente), ela não se rebela contra os abusos físicos e psicológicos da avó, que usa o amor de Amanda pela mãe.

O texto é escrito em primeira pessoa, narrado pela própria Amanda, com uma linguagem simples, ágil e real.

Esse é o tipo de livro que leio quase em um único fôlego. Não porque seja leve ou superficial. Pelo contrário, nesse romance vemos abandono, negligência, violência, traumas, fanatismo religioso. A verdade é que me identifico com a fala de Amanda, com sua história, mesmo que eu não tenha vivido aquela experiência. A literatura tem o condão de despertar esse sentimento: uma ligação com pessoas ficcionais (que provavelmente refletem pessoas reais) opostas a nós. É fácil sentir a dor de Amanda, se conectar com ela e torcer que se livre da dependência que a avó criou.

[…] O corpo inteiro pedindo licença para escapar tristeza, e eu de olhos fechados, sentindo em perigo as minhas camadas ainda malformadas, como se fosse menino ainda muito pequeno que se debate deitado de barriga para cima e não tem quem o desvire para que não morra afogado no próprio golfo (p. 56-57).

Leitura assim me prende, me faz querer ler mais e mais e mais. Pois só vale a pena me dedicar àquilo que me toca, que me diz algo. Tenho apreciado, cada vez mais, essa leitura que me faz pensar durante ou depois (até dias depois): e se fosse comigo? Será que eu também agiria assim? Eu seria como Amanda? E, se eu fosse sua vizinha, enxergaria através de sua janela e a ajudaria a se libertar?

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