16 de agosto de 2023

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[Resenha] A voz de Esperança Garcia

Por João P. Luiz e Bernardo Aurélio

  • Título Original: A voz de Esperança Garcia
  • Gênero do Livro: História em quadrinhos
  • Editora: Quinta Capa
  • Ano de Publicação: 2023
  • Número de Páginas: 132
Sinopse: Esperança Garcia foi uma mulher que viveu escravizada em meados do século XVIII, no Piauí. No dia seis 6 de setembro de 1770, ela escreveu uma carta para o governador de sua província, denunciando os maus tratos que sofria constantemente e solicitando providências.

Sua carta é uma das diversas manifestações espontâneas dos negros contra a escravidão, em sua luta pela liberdade. Trata-se de um registro histórico e literário, considerado um dos primeiros textos afro-brasileiros de que se tem conhecimento. É considerada uma petição pública e, por causa dela, o Governo do Estado do Piauí determinou que, no dia 6 de setembro, seja comemorado o dia estadual da consciência negra. Além disso, a Ordem dos Advogados do Brasil reconheceu Esperança Garcia como a primeira advogada do país.
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Enquanto a saraivada de pau corria em seu corpo, Esperança achou que iria morrer, mas lutou, procurando não demonstrar nenhuma fraqueza ou sinal de dor (LUIZ; AURÉLIO, 2023).

Entre os dias 29 de junho e 1º de julho de 2023, participei da 2ª Feira Literária de Barra Grande, em Cajueiro da Praia, Piauí. Fui apresentar o meu livro Os nós em mim e voltei com a bagagem cheia de novas histórias e novos conhecimentos.

A feira homenageou Esperança Garcia. Antes disso, eu já tinha visto que ela seria tema também do Salão do Livro do Piauí (Salipi), que acontece em Teresina neste momento e vai até o dia 20 de agosto.

Na Feira Literária de Barra Grande, percebi que pouco (para não dizer nada) sabia a respeito de Esperança Garcia. Essa constatação ganhou força quando acompanhei uma palestra de Elio Ferreira de Souza sobre a carta que Esperança escreveu e ouvi outro escritor falar sobre ela.

O outro escritor é João P. Luiz, que publicou a história em quadrinhos A voz de Esperança Garcia, em parceria com Bernardo Aurélio.

Esperança Garcia foi uma mulher negra e escravizada que viveu no Piauí, no século XVIII. No dia 6 de setembro de 1770, ela escreveu uma carta ao Governador da Capitania reclamando dos maus-tratos que sofria na fazenda Poções, administrada pelo Capitão Antônio Vieira do Couto, na região do atual Município de Nazaré do Piauí.

Eu sou uma escrava de Vossa Senhoria da administração do Capitão Antônio Vieira do Couto, casada. Desde que o capitão lá foi administrar que me tirou da fazenda algodões, onde vivia com o meu marido, para ser cozinheira da sua casa, ainda nela passo muito mal.
A primeira é que há grandes trovoadas de pancadas em um filho meu sendo uma criança que lhe fez extrair sangue pela boca, em mim não posso explicar que sou um colchão de pancadas, tanto que caí uma vez do sobrado abaixo peiada; por misericórdia de Deus escapei. A segunda estou eu e mais minhas parceiras por confessar há três anos. E uma criança minha e duas mais por batizar. Peço a Vossa Senhoria pelo amor de Deus ponha aos olhos em mim ordenando digo mandar ao procurador que mande para a fazenda de onde me tirou para eu viver com meu marido e batizar minha filha*.

Em virtude do teor dessa carta, em 2017, a seccional do Piauí da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) reconheceu Esperança Garcia como a primeira advogada piauiense e, em 2022, a OAB Nacional a reconheceu como a primeira advogada brasileira. Décadas antes, a Lei nº 5.046, de 7 de janeiro de 1999, havia instituído o dia 6 de setembro como o Dia Estadual da Consciência Negra no Piauí.

Hoje, a Carta tornou-se um paradigma de resistência, como a luta em favor da equidade de direitos entre negros e brancos e contra o preconceito racial, a construção da identidade e da autoestima de homens e mulheres negras no Piauí, valores estes evocados e reivindicados por essa população negra, através da ação de grupos organizados, durante os debates sobre as políticas públicas e as ações afirmativas (SOUZA, 2015, p. 3).

Em A voz de Esperança Garcia, João P. Luiz e Bernardo Aurélio partiram da narrativa da carta e preencheram as lacunas na biografia de Esperança. Na apresentação da obra, João P. Luiz relata a dificuldade de escrever uma história a partir de uma única carta (escutei esse relato ao vivo e a cores). Isso porque, como ele também conta naquela apresentação, Esperança Garcia não tem história. Seu nome não consta nos livros, nos registros oficiais ou em outros textos históricos, a não ser por menções em dois documentos posteriores à carta (SOUSA, 2017; SOUZA, 2022): uma carta anônima e não datada que reitera a situação dos escravos na fazenda do Capitão Antônio Vieira do Couto, em especial de Esperança, e a “Relação dos Escravos das fazendas da Inspeção de Nossa Senhora de Nazaré”, datada de 1778.

O que se conhece da vida de Esperança Garcia foi o que ela mesma narrou naquela petição: que teria sido levada da fazenda Algodões, para longe do esposo, pelo Capitão Antônio Vieira do Couto, que infligia a ela e ao filho os mais cruéis castigos físicos.

Unindo os fragmentos da carta com a ficção, baseados em extensa pesquisa acerca do contexto histórico do século XVIII e da escravidão no Brasil e no Piauí, os autores de A voz de Esperança Garcia deram vida a essa mulher de apenas 19 anos, ao seu esposo Ignácio e aos dois filhos, Pedro e Paula, cuja existência e cujos nomes são depreendidos das duas cartas e da citada relação de escravos da fazenda Algodões. Deram rostos e personalidade ainda a outros personagens, escravos da fazenda Poções que compartilharam com ela o terror da escravidão, ajudaram-na e foram ajudados por ela.

Nos quadrinhos, vemos Esperança Garcia em movimento, em constante luta, com uma combinação de fé cristã e sede de liberdade, sem se calar diante das injustiças, ainda que pudesse prever as consequências de seu “atrevimento”. Não havia para ela nome mais adequado do que Esperança.

Deus tem a porta aberta para toda alma, Cipriano. Todos merecemos ser livres um dia e entendemos que isso começa com o batismo (LUIZ; AURÉLIO, 2023).

Ela tem tanto discernimento quanto ao seu direito de ser livre e de ser tratada com dignidade, quanto à sua igualdade em relação a qualquer outra pessoa, que ousa escrever para a maior autoridade da província para reivindicar melhores condições de vida.

A Esperança Garcia do texto criado por João P. Luiz (assim como a Esperança real) era cativa apenas no corpo. Sua alma e seus pensamentos eram livres. E essa liberdade foi conquistada por meio do conhecimento — conhecimento que é o pavor dos opressores.

Senhores, esta é a Esperança. Ela fala o que não deve e sabe ler e escrever. Já viram alguma peça assim? (LUIZ; AURÉLIO, 2023).

Mas se vê, por outro lado, que Esperança, como qualquer ser humano, ainda mais submetida a tanta barbárie, tinha medo, por ela própria e sobretudo por seus filhos.

Para alguns, Esperança Garcia é quase uma mulher sobrenatural, muito inteligente para seu tempo. Na medida em que um branco adota um negro como especial e atribui a ele aquilo que considera excepcional (que seria impossível para a comunidade negra), isso diminui a importância da história do movimento negro, porque torna especial um indivíduo, excluindo-o do conflito transformativo racial. Então, eu não conseguiria imaginar ela assim: uma mulher acima da média. Para mim ela foi uma pessoa “comum”. Acredito que são essas pessoas que mudam realmente as coisas. Você precisa apenas ser você, entender sua posição social e ter dignidade humana (LUIZ, 2023).

Eu concordo com João P. Luiz: ao se diferenciar os indivíduos que agem a favor das mudanças, corre-se o risco de enfraquecer a possibilidade de pessoas comuns (como eu, como você que lê este texto agora) se engajarem na luta pela igualdade, pela justiça social, pela transformação do mundo. Essa ideia serve àqueles que desejam manter as coisas como estão: se somente as pessoas especiais tiverem a capacidade de mudar os rumos da nossa história, esperaremos, inertes, pela chegada e pela iniciativa de tais seres iluminados.

O diferencial de Esperança Garcia era sua consciência, mas ela nos prova que todos e todas nós podemos desenvolvê-la por meio da educação. Com educação, temos condição de desvelar os males do mundo (ou, pelo menos, aqueles que ocorrem ao nosso redor) e de nos posicionar diante deles. O meio que Esperança encontrou de lutar foi a escrita. Nós podemos brigar de qualquer jeito — do jeito que der, do jeito que sabemos, do jeito que se mostrar mais eficiente.

Ciente do seu mundo e dos limites que sua condição de escrava podiam propiciar, Esperança Garcia utilizou a estratégia dos conquistadores para defender os seus direitos, angariar vantagens e, com isso, (re)planejar seu destino perto dos seus filhos e do seu marido (SOUSA, 2017).

Na 2ª Feira Literária de Barra Grande, durante a palestra de Elio Ferreira de Souza, discutiu-se como Esperança aprendeu a escrever e como conseguiu material para a elaboração da carta. Os historiadores têm suas suposições. Os autores de A voz de Esperança Garcia escolheram seus caminhos, mas eu não vou entregá-los aqui.

Quanto à vida de Esperança após a escrita da carta, quase não se sabe. Não há notícias a respeito das consequências de seu ato. Elio Ferreira de Souza (2022) suspeita que o Capitão Vieira Couto foi, ao menos, chamado a se explicar diante do Governador.

A carta anônima, possivelmente escrita por José Esteves Falcão, o administrador da fazenda Poções (SOUSA, 2017), conta que Esperança havia fugido da fazenda e que o capitão andava à sua procura para castigá-la. A relação de escravos da fazenda Algodões, de 1778, traz o nome de Esperança, do esposo Ignácio e das crianças Pedro e Paula, o que indica que uma de suas demandas foi atendida: voltar para a fazenda Algodões (LUIZ; AURÉLIO, 2023; SOUSA, 2017; SOUZA, 2022).

* Transcrição da carta em português atual. Disponível em: https://esperancagarcia.org/a-carta/

Referências:

LUIZ, João P.; AURÉLIO, Bernardo. A voz de Esperança Garcia. Teresina: Quinta Capa, 2023.

LUIZ, João P. Apresentação. In: LUIZ, João P.; AURÉLIO, Bernardo. A voz de Esperança Garcia. Teresina: Quinta Capa, 2023, p. 9-10.

SOUSA, Maria Sueli Rodrigues de et al (org.). A escrita de si: a carta de Esperança Garcia. In: Dossiê Esperança Garcia: símbolo de resistência na luta pelo direito. Teresina: EDUFPI, 2017, p. 13-20. Disponível em: <https://esperancagarcia.org/dossie-esperanca-garcia/>. Acesso em: 14 ago. 2023.

SOUZA, Elio Ferreira de. A “carta’ da escrava Esperança Garcia do Piauí: uma narrativa precursora da literatura afro-brasileira. Disponível em: <https://abralic.org.br/anais/arquivos/2015_1455937376.pdf>. In: CONGRESSO INTERNACIONAL ABRALIC, 14, 2015, Belém. Anais eletrônicos… Belém: ABRALIC, 2015. Acesso em: 13 ago. 2023.

SOUZA, Elio Ferreira de. A Carta da escravizada Esperança Garcia, escrita por ela mesma, e a formação do cânone literário afro-brasileiro. Aletria, Belo Horizonte, v. 32, n. 1, p. 277-297, 2022. Disponível em: <https://periodicos.ufmg.br/index.php/aletria/article/view/35457>. Acesso em: 13 ago. 2023.

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