“Prenda o leitor já na primeira frase” — essa dica não falta quando se trata de orientações para criar narrativas ficcionais. Embora de difícil execução, o conselho se sustenta quando se analisa a concorrência que se impõe aos livros (por exemplo, outros livros e as redes sociais), além da falta de tempo de que todo mundo se queixa. Uma obra que capta a atenção do leitor no primeiro encontro tem mais probabilidade de não se ver revendida num sebo ou esquecida numa estante.
Em caso de livros ou autores célebres, essa característica pode não ter tanto peso. Mesmo que o início não seja tão cativante, a validação prévia da obra nos leva a acreditar que logo adiante nos depararemos com aquele tchã, aquele aspecto que faz a obra aparecer em listas de indicações.
Entre mim e Capitães da areia ocorreu algo desse tipo. A minha leitura do livro começou arrastada, como se ele e eu não tivéssemos ainda nos conectado. Por isso, o deixei por uns dias, troquei-o por outros, fingi que não o via.
Afora o fator que descrevi no parágrafo anterior, sou persistente nas leituras (sinto-me mal por largar alguma pela metade e só o faço depois de avançar por muitas e muitas páginas). Então resgatei esse romance da mesa de cabeceira. Foi aí que o match aconteceu.
Aquela recomendação me veio à mente quando terminei a leitura. Ao contrário da minha experiência, as primeiras páginas da obra devem ter fisgado um sem-número de leitores e leitoras e, por outro lado, pode ser que outros tantos tenham desistido ali ou em um momento seguinte. Então como definir uma maneira única de “prender” leitores que pensam, sentem, veem e vivem de modos distintos?
Não sei a resposta. Aliás, não deve existir uma. Cada vez mais me convenço da particularidade da relação livro-leitor: cada pessoa, ao ler um texto, recebe esse conjunto de palavras de uma forma diferente, uma forma que não será idêntica à de outra pessoa. O leitor pode até sofrer a influência do cânone, da moda, das sugestões, o que de alguma maneira impacta sua expectativa e sua disposição para a leitura, como eu disse anteriormente, porém essa pressão externa não alterará de todo o impacto da obra em seu interior.
Como era inevitável, uma segunda pergunta veio à tona: o que posso discorrer a respeito de Capitães da areia que ninguém tenha feito ainda? E essa é sempre a minha ressalva ao escrever aqui sobre livros e autores clássicos: o que posso eu escrever, quando os críticos e leitores ao redor do mundo já os abordaram à exaustão?
Volto então três parágrafos: a forma como senti, compreendi e captei essa obra não se iguala à forma de outras pessoas. Mesmo que não sejam inovadoras, as palavras aqui representam o meu sentimento pessoal sobre a leitura.
O romance, do escritor Jorge Amado, foi publicado pela primeira vez em 1937, durante o Estado Novo (1937-1945), um período ditatorial instituído por Getúlio Vargas. Nesse ponto, já salta um aspecto intrigante: a coragem do autor ao publicar um livro com tão forte crítica social em uma época de repressão. O incômodo que a obra causou se revelou com a decisão do governo de queimá-la em uma praça pública de Salvador naquele mesmo ano.
Nascido em Itabuna, Bahia, Jorge Amado tinha apenas 25 anos quando publicou Capitães de areia e o viu ser censurado pelo governo. Àquela altura, já havia lançado O país do carnaval (1931), Cacau (1933), Suor (1934), Jubiabá (1935) e Mar morto (1936). Filiado ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), era engajado politicamente e foi eleito deputado federal em 1946. Em 1961, tornou-se membro da Academia Brasileira de Letras (ABL).
Capitães da areia conta a história de crianças e adolescentes (quase todos do sexo masculino) que formam, na cidade da Bahia (Salvador), um grupo de mesmo nome. São meninos de rua que vivem em um armazém abandonado à beira-mar (o trapiche) e roubam para se sustentar. São procurados pela polícia e odiados pela sociedade em geral, a não ser pelo padre José Pedro, pela mãe de santo Don’Anninha, pelo doqueiro João-de-Adão e por outras poucas pessoas.
Por meio de episódios da vida do chefe do bando, Pedro Bala, e de outros membros, como Professor, Sem Pernas, Volta Seca, João Grande, Pirulito, Gato e, um tempo depois, Dora, desvelam-se as circunstâncias que levaram essas crianças àquelas condições de vida. E, apesar de cada um deles ter suas próprias vivências, os capitães da areia compartilham o abandono, a marginalidade e o sentimento de vingança em relação àqueles que — eles sabem — são direta ou indiretamente responsáveis por sua situação.
São crianças que falam e se movem no mundo como adultos ou mais adultos do que crianças. Foram obrigadas, desde cedo, a se virar, a tomar decisões, a assumir o rumo de suas vidas, sem ter quem os protegesse, aconselhasse ou se importasse com sua dor. São personagens fictícias, porém inspiradas em pessoas reais (inclusive, capitães de areia era o termo que a imprensa usava para se referir a crianças parecidas com os protagonistas do livro).
Entre todas as histórias tristes, a do Sem Pernas me comoveu mais. Ele é um menino com uma deficiência física que sofre preconceito triplo: o da sua condição social, da sua cor e da sua limitação física. Usa desse artifício para ajudar o grupo em suas atividades. Encarregado de penetrar nas casas onde há objetos de valor, finge buscar acolhida e faz o reconhecimento do lugar para facilitar o roubo. A cada vez que ele vai a uma dessas residências seu ódio aumenta, ódio não só pelos ricos, mas por todo o mundo, que ele às vezes desconta nos próprios companheiros. Ao mesmo tempo, evidencia-se sua sede de amor e carinho, seu desejo de ter uma família.
Jorge Amado não tem dó dos leitores. Ele mostra a realidade sem meias palavras, desnudando a exclusão social. Não desumaniza as crianças, não as culpa por sua situação de vida, não as retrata como vilãs. Pelo contrário, em vez de delinquentes, os meninos são representados como super-heróis, que lutam com as armas que possuem para sobreviver em circunstâncias tão desfavoráveis.
Não se trata de exaltar o crime ou coisa parecida. Nessa obra, o autor dá visibilidade aos excluídos, em coerência com a sua ideologia política; expõe a falência da sociedade, ainda mais a sociedade daquela época, nos quesitos garantia de direitos básicos (ou mesmo no reconhecimento de tais direitos) e proteção da infância. A narrativa escancara a nossa responsabilidade por esses males e nos convida a analisar as causas da pobreza e da criminalidade.
Ao fechar Capitães da areia, meu sentimento principal foi de tristeza. Em um paradoxo, doeu-me ser capaz de entender o tema do livro. Queria eu que o seu ponto central estivesse tão distante da nossa realidade de hoje que a obra fosse considerada arcaica. De lá para cá, o Brasil avançou, é óbvio, mas não se pode negar que ainda existam capitães da areia espalhados pelo país.
Enfim, Capitães da areia é atemporal. Não é à toa que figura entre os livros clássicos da literatura brasileira. Se você ainda não o leu e quer conhecê-lo, clique no link a seguir:
Deixe seu comentário