05 de maio de 2020

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Cartas para Marilu (n° 11)

Quinta-feira, 11 de julho de 1985.


Querida Marilu,


Havia se passado bastante tempo desde o início do trabalho no hotel. Certa noite, obrigaram-me a ficar até tarde, pois haviam hóspedes importantes por chegar, e o gerente me mandou faxinar cada um dos quartos desocupados. Nada poderia estar fora do lugar, ele disse, nem um grão de poeira deveria restar nos aposentos das tais autoridades.

Quem eram os hóspedes tão exigentes ninguém me informou, e eu também não questionei. Esse não era o tipo de gente que me interessava. Na verdade, quase nada despertava meu interesse naquela época.

Quando enfim deixei o hotel, vi um grupo de pessoas saindo da igreja ao lado. Não tinham cara de reza, mas como eu poderia ter certeza se também já não rezava? Movimentaram-se com rapidez e em poucos segundos sumiram. Perguntei-me quem eram elas, embora não tenha perdido tanto tempo buscando a resposta. Logo dormi.

Ao sair do hotel na semana seguinte, avistei as mesmas personagens aparecendo e desaparecendo, como espíritos que se esvaem no ar. Uma delas, porém, surgiu na minha frente antes que eu chegasse à pensão. Chamava-se Teresa. Disse que, sendo eu trabalhadora, poderia me juntar ao grupo em suas reuniões na igreja, mas deveria guardar o assunto em segredo, especialmente do gerente do hotel.

Recusei o convite, menos por medo do que por indisposição. Não queria me meter em problemas justamente ao lado do trabalho — foi a justificativa que inventei. Só que ela não desistiu e voltou a me surpreender no meio da rua. Fomos, aos poucos, construindo uma amizade, de uma forma que eu não experimentara nem com Vera, pois com Teresa me era permitido falar tudo o que sentia e eu acabava falando inclusive o que nem sabia que sentia.

Contei a Teresa sobre você e nossa separação, esperando o julgamento que sempre vinha. Seu olhar, entretanto, não continha recriminação. Ela me encarou com uma face tranquila e me aconselhou a não sentir culpa por escutar meu coração. A única coisa errada ali, ela quase discursou, era eu ser privada do convívio com minha filha.

Foi aí que pensei, Marilu. Como pensei! Não imaginava que em minha mente cabiam tantos pensamentos. Foram horas e horas desfiando, costurando e amarrando pensamentos. Então sorri. Não porque os pensamentos fossem assim tão alegres. Mas porque enxerguei o equívoco da minha mãe e da minha avó: eu não fazia mal em pensar. Também compreendi que meu único erro era aceitar que me arrancassem do meu lugar de mãe. Não importava se eu havia saído de casa, continuava a ser sua mãe e não deixaria mais o tempo apagar minha lembrança.

Passei dias pedindo que a coragem me encontrasse. Fui até seu pai, acreditando que bastaria cuspir aqueles pensamentos para resolver a nossa situação. Comuniquei o que pensava, o que tinha começado a pensar. Não sei por que imaginei que ele entenderia cada um dos meus pensamentos como eu os entendia naquele momento.

Seu pai me olhou espantado. Disse que não me reconhecia mais, porque eu havia me transformado em um tipo de mulher que envergonhava as mulheres decentes. Engoli essas palavras com sabor amargo, que desceram arranhando a garganta. Despedaçada a confiança que havia me levado até ali, jurei voltar para casa e ser esposa dele outra vez, se esse fosse o preço para ficar ao seu lado.

Sem qualquer vacilação, Antônio respondeu que não me queria mais e que eu jamais tornaria a ver a filha dele, pois já não considerava que você também fosse minha.

Naquela noite, só me restou chorar. Deitada de bruços no meu colchão, ainda entalada com aquelas palavras, tentei não pensar em nada.


Com amor,

Neusa

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2 Comentários

  • Eliete Morais
    12 maio, 2020

    Eu amo as cartas para Marilu, me divirto com elas.

    • Eriane Dantas
      15 maio, 2020

      Obrigada, Eliete!

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