30 de maio de 2020

2 Comentários

Cartas para Marilu (n° 12)

Sábado, 13 de julho de 1985.


Marilu,


Depois do desastre que foi a conversa com seu pai, encontrei Teresa e disse que queria participar de suas reuniões. Não importava contra quem eles lutavam; eu também queria lutar. A luta por liberdade também me tinha feito sair de casa, embora eu não tenha refletido sobre isso antes de tomar a decisão.

Saí do hotel diretamente para a igreja ao lado, onde encontrei dezenas de homens e mulheres que alternavam sorrisos e uma expressão de tristeza. Teresa me explicou que seus companheiros tinham esperança de ver o país livre outra vez, mas o clima de repressão e o medo por vezes ofuscavam seus pensamentos positivos.

Um homem subiu ao altar e reafirmou a importância da resistência. Eles trilhavam o caminho certo e ninguém poderia esmorecer naquele momento. Relembrou os companheiros que não se encontravam mais ali, companheiros cujo paradeiro só podiam imaginar, e pediu que cada um dos presentes prosseguisse na batalha por aqueles que não podiam fazê-lo.

Quando ele saiu, uma mulher ocupou seu lugar e pediu que os participantes não esquecessem contra quem estavam lutando. Sua guerra era para arrancar o controle do país das mãos dos tiranos, aqueles que não haviam suportado ver o mínimo de avanço das classes operárias e o perigo de redução da hegemonia da elite. Sua guerra era para dar ao povo voz para decidir o futuro do país.

Em seguida, Teresa se dirigiu até lá e fez um discurso que parecia destinado a mim. Eu acho que ela o fez para mim mesma, pois me encarava enquanto falava. Exaltou nossa liberdade de pensar por nós mesmos, nossa liberdade de fazer o que quiséssemos, nossa liberdade de dizer o que pensávamos. Essa liberdade, dizia ela, havia sido roubada anos antes e cabia a cada um de nós trabalharmos sem descanso para resgatá-la. Só assim poderíamos recuperar os direitos que os ditadores haviam nos tirado e pleitear aqueles que ainda não tínhamos conquistado.

Outras falas se seguiram e cada uma delas foi encerrada com palavras de ordem e aplausos. No final, o grupo combinou um protesto para dali a dois dias, em uma rua muito movimentada perto daqui.

Tive inveja ao escutar cada um dos oradores. De onde sacavam tanta certeza de que suas reivindicações eram legítimas e de que lutavam do lado justo? De onde vinha a coragem para enfrentar um inimigo reconhecidamente mais poderoso, um inimigo que não se acanhava em usar a violência para alcançar seus objetivos? Desejei ter um pouco daquela certeza e daquela vontade. Carecia de uma e de outra para empreender minha batalha pessoal.

Dois dias depois, o ato daquele grupo aconteceu, mas eu não participei. Ainda não havia conseguido a coragem com que eu sonhava. Ainda não estava preparada para uma briga maior do que a minha própria. O ato foi brutalmente reprimido pelos militares. Houve confronto. Muitos manifestantes foram agredidos; outros foram detidos, inclusive Teresa.

Teresa apareceu no dia seguinte e me explicou a razão de sua soltura: seu pai, um militar de alta patente, tinha dado um jeito de libertar a filha. Ela se sentia culpada por estar ali, enquanto os outros permaneciam presos. Havia até se recusado a aceitar a ajuda do pai. Agora precisava encontrar uma maneira de socorrer os companheiros que havia deixado para trás, mesmo que precisasse pedir um favor àquele homem que tanto odiava.

Ela não conseguiu, Marilu. O pai não lhe ajudou e ainda a chantageou: ou ela abandonava aquela vida de terrorista e virava uma moça normal ou ele não a sustentaria mais. Teresa escolheu continuar defendendo aquilo em que acreditava e foi dividir o pequeno quarto de pensão comigo. Arrumou também um emprego no hotel (finalmente o gerente concordou em contratar alguém para me ajudar na limpeza). Juntas, traçamos planos para persistirmos em nossas lutas — e a luta de uma se tornou a luta da outra.

Filha, ela sempre repete que eu não posso desistir do seu perdão, mas eu nunca pensei em desistir, nem mesmo quando ele me pareceu impossível. Talvez este ainda não seja o momento com que sonho: o momento de receber de você aquele mesmo beijo do dia em que parti de casa, o beijo que queimou minha bochecha por anos e me sustentou por todo esse tempo. Mesmo que não seja agora, tenho esperança de viver esse sonho. Jamais me renderei. Seguirei lutando.


Com amor,

Neusa

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2 Comentários

  • Eliete Morais
    30 maio, 2020

    Linda carta????

    • Eriane Dantas
      01 junho, 2020

      Brigada! 🙂

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