03 de março de 2020

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Cartas para Marilu (n° 10)

Terça-feira, 9 de julho de 1985.


Minha filha querida,


Como mencionei na última carta, quando saí de casa, encontrei emprego num hotel. Você passou na frente dele muitas vezes, com certeza. Eu já havia passado também, mas nunca tinha entrado sequer até a recepção. Por isso, não poderia adivinhar que, após aquela pequena porta, escondiam-se tantos quartos, salas, saguões, varandas, banheiros e um restaurante e que tantas pessoas se hospedavam ali dia após dia.

Mesmo com toda essa extensão, o hotel tinha tão poucos funcionários que eu me dividia para realizar o trabalho de pelo menos três pessoas. Eu, porém, não reclamava. Era esse emprego que me mantinha. Não só porque o salário provia os meios materiais para minha sobrevivência, mas porque o cansaço do corpo me impedia de pensar.

Pensar muito, como minha vó defendia e minha mãe repetia, seria perigoso para uma mulher, pois nós nunca pensamos só com o cérebro; temos a estranha mania de salpicar emoções nos pensamentos mais racionais. E esse conjunto de coisas não pode levar a boas ações. Por esse motivo, elas diziam, o pensamento deveria ser reservado ao sexo masculino. Quem poderia afirmar que aquelas duas mulheres se enganavam? Não tinha sido assim que eu fora levada àquela situação?

No início, saía do hotel diretamente para o quarto na pensão, onde o colchão estreito e duro me recebia. Eu fechava os olhos e ficava ali distante do mundo, mesmo que não dormisse de imediato. Tudo para não estar por um segundo sozinha em minha companhia, porque a certeza sobre minha atitude e nosso reencontro no futuro não resistiu à prova do nascer do dia. Eu não suportava aquela desconhecida no espelho. Aquela mulher ali era a encarnação do que eu mais desprezava. A mulher cujo reflexo costumava ver em outros tempos jamais teria escolhido tal destino.

O colchão, meu único companheiro, era compreensivo: não me fazia acordar no meio da noite e não me dizia: “Abra os olhos, Neusa, e se lembre do que fez”. Apenas acolhia meu corpo cansado, que, com o tempo, foi se habituando às dores, como se fossem parte mesmo dele. Dizem que sempre nos acostumamos até àquilo que nos faz mal. Já não havia surpresa nas pontadas na cabeça, no peso sobre as costas, nos calos nas mãos ou no latejo nos dedos dos pés. Então, com o corpo anestesiado, outras dores me assaltaram.

Comecei a pensar que ninguém daria por minha falta se eu sumisse naquele momento. Talvez só o gerente do hotel estranharia meu sumiço quando eu não aparecesse para trabalhar no dia seguinte. Ocuparia a mente comigo apenas por um breve momento, o suficiente para reclamar da minha irresponsabilidade. Contrataria em seguida outra faxineira para me substituir e seguiria com os afazeres, mandando e desmandando nos funcionários.

Pensando nisso, cheguei à conclusão de que a mesma coisa aconteceria com você. Logo eu me tornaria uma lembrança vaga e distante, como um desenho escrito a giz no chão, que vai se apagando com o tempo.  Logo eu seria substituída por alguém presente. Foi aí que tomei uma nova decisão, que contarei a você na próxima carta.


Com amor,

Neusa

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