31 de outubro de 2019

4 Comentários

O tempo das minhas avós

Por Eriane Dantas

Minhas avós tinham personalidades diferentes. Uma arrumou as malas e se mudou para a capital, deixando para trás o marido, que não queria se despedir do interior que ela tanto odiava. A outra viveu ao lado do esposo até o dia em que a morte o levou.

A primeira só se permitiu viver com liberdade após a partida do meu avô, mesmo os dois já estando separados. A segunda, pelo contrário, apesar das dores vividas ao lado do marido, não teve mais vida depois de perdê-lo.

É curioso que o mesmo fato (a morte do esposo) tenha representado coisas opostas para elas. Uma foi livre em algum momento, por alguns anos; a outra, não. Uma se tornou mais expansiva, vaidosa; a outra, mais retraída, entristecida.

Elas foram duas mulheres de uma mesma geração, com histórias distintas. No entanto, em um aspecto foram iguais: tiveram sua vida definida por outra pessoa, tiveram seu destino determinado por um homem.

Hoje tanto se tem falado em feminicídio. Basta ligar a TV no telejornal local ou acessar um site de notícias para se aterrorizar com a quantidade de casos de violência contra mulheres. Quase sempre o agressor é um namorado, companheiro, marido ou ex que se imagina com direito de determinar o destino de uma mulher.

Mais chocante é assistir a isso e ainda escutar um ministro de Estado dizer que os homens muitas vezes são violentos porque se sentem intimidados com as conquistas das mulheres; ouvir um pastor evangélico afirmar que o plano de Deus é que as mulheres sejam subjugadas pelos homens (eles devem ser a cabeça, afinal); ver uma foto de mulheres jovens participando de um curso de feminilidade bíblica (ou algo assim) — seja lá o que isso significa — para aprenderem a ser boas esposas.

Fui criada na doutrina católica e, mesmo quando eu tinha medo de duvidar, aqui dentro de mim algo já me dizia que determinadas coisas não estavam certas ali.

Sempre rejeitei a figura do Deus vaidoso e vingativo que o cristianismo passa aos fiéis. Porque, se ele é um pai bondoso (e um pai-deus, sem fraquezas humanas, portanto), não sairá por aí castigando os filhos simplesmente por pronunciarem seu nome em vão ou darem atenção a outras coisas e não a ele.

Pensando nisso, me dava agonia escutar a ordem de obediência às esposas. Não fazia (e continua não fazendo) sentido que Deus — o pai-deus bondoso — quisesse que uma parte de suas criaturas humanas (as mulheres) se sujeitasse à vontade da outra parte (os homens), a qualquer vontade. Além disso, que critério daria a eles primazia em relação às mulheres: sua posição na criação? A doação da tal costela? Ou o episódio do fruto proibido?

Isso me faz lembrar as minhas avós, que não sofreram violência física, mas foram obedientes aos maridos, mesmo uma delas tendo realizado um ato de desobediência. Quando olho para as experiências daquelas duas mulheres, posso até relativizar: afinal, aquela era outra época. Elas foram criadas exatamente para servir aos esposos e para nunca questioná-los, nem mesmo quando o comportamento deles as prejudicava ou magoava.

Nós, porém, não vivemos nos anos 1940 ou 1950. Na última vez em que conferi o calendário, estávamos perto de nos despedir de 2019 e entrar em uma nova década. Temos mais informações agora, outra visão sobre o mundo e conquistamos muito, mas não tudo a que temos direito.

Então por que muitas de nós estão escolhendo voltar a pensar e a viver como nossas avós? O que está acontecendo conosco? Por que algumas de nós, às vésperas do ano 2020, ainda estão se preparando para ser esposas obedientes e silenciosas? Que contribuição os líderes religiosos e os agentes políticos dão às mulheres com seus discursos machistas? Por que muitas de nós concordam quando ministros e pastores insinuam que não devemos lutar por mais conquistas? Por que algumas batem palmas quando esses ministros e pastores sugerem que nos mantenhamos sob o comando dos homens, como forma de obedecer à vontade de Deus e de poupar as nossas vidas?

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4 Comentários

  • Adriana
    03 novembro, 2019

    Eriane,

    Li e reli o texto carregado de simbolismos, significados e conteúdos construídos historicamente. Desejei vê-lo publicado em revistas, jornais e outros meios de comunicação. Talvez porque, para que possamos encontrar as respostas das perguntas do texto, seja necessário começarmos a nos inquietar com provocações que nos possibilite minimamente refletir sobre para onde estamos indo.
    Parabéns!!!

    • Eriane Dantas
      05 novembro, 2019

      Muito obrigada, Adriana!

  • Eliete Morais
    31 outubro, 2019

    É minha amiga, temos difíceis, onde iremos nós?

    • Eriane Dantas
      31 outubro, 2019

      É a pergunta do ano: onde vamos parar?

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