Hoje apresento Quarto de despejo: diário de uma favelada, de Carolina Maria de Jesus, o primeiro livro do meu plano literário para 2020.
Antigamente eu cantava. Agora deixei de cantar, porque a alegria afastou-se para dar lugar a tristeza que envelhece o coração. […] (p. 150).
Carolina Maria de Jesus nasceu em Sacramento, Minas Gerais, em 1914, e se mudou para São Paulo em 1947, onde foi empregada doméstica e, mais tarde, passou a catar papel e outros materiais reutilizáveis.
Era apaixonada pela leitura e via a escrita como uma forma de se esquecer, por alguns instantes, das amarguras da vida que levava e de não enlouquecer. E escreveu tanto que, após Quarto de despejo, publicou Casa de Alvenaria (1961), Pedaços de fome (1963), Provérbios (1963), Diário de Bitita (1982) — este último livro publicado postumamente. Depois de sua morte, foi organizada também uma coletânea com seus poemas, com o título Antologia pessoal (1997), e outros textos inéditos da autora começaram a vir a público mais recentemente.
Quarto de despejo, no entanto, foi o seu maior sucesso: teve 30 mil exemplares vendidos apenas na primeira edição, de 1960, foi traduzido para treze idiomas, distribuído em mais de quarenta países e chamou a atenção de grandes escritores brasileiros, como Rachel de Queiroz e Manuel Bandeira.
… Estive revendo os aborrecimentos que tive esses dias (…) Suporto as contingências da vida resoluta. Eu não consegui armazenar para viver, resolvi armazenar paciência (p. 18).
Carolina era uma mulher negra, mãe solo, com pouca escolaridade e moradora da periferia. Talvez por essa razão o sucesso de Quarto de despejo não tenha sido suficiente para fazer Carolina ser lembrada com mais frequência quando se fala em literatura brasileira.
Carolina Maria de Jesus já havia enviado seus manuscritos para editoras, inclusive dos Estados Unidos, que se recusaram a publicá-los, quando encontrou o jornalista Audálio Dantas. Após esse encontro Audálio publicou uma reportagem com trechos dos diários na Folha da Noite, em 1958, e na revista O Cruzeiro, em 1959. Foi ele mesmo quem leu os diários e trabalhou na edição do livro.
Fui no Correio retirar os cadernos que retornaram dos Estados Unidos. (…) Cheguei na favela. Triste como se tivessem mutilado os meus membros. O The Reader Digest devolvia os originais. A pior bofetada para quem escreve é a devolução de sua obra.
Para dissipar a tristeza, que estava arroxeando a minha alma, eu fui falar com o cigano. […] (p. 154).
Em Quarto de despejo, Audálio Dantas optou por manter a forma de escrita da autora, até mesmo quando contraria as normas ortográficas e gramaticais, ajustando apenas o necessário à compreensão do texto e excluindo partes repetitivas — uma decisão mais que acertada. Ao termos contato com o texto original, assim como Carolina o produziu, vemos maior veracidade nos escritos e conhecemos um pouco da identidade da escritora.
O diário de Carolina Maria de Jesus, que retrata acontecimentos de julho de 1955 e do período entre maio de 1958 e 1° de janeiro de 1960, nos mostra a dura realidade dos residentes em favelas. Carolina expõe sua luta para ganhar alguns cruzeiros, catando e vendendo tudo o que encontra, e comprar os itens mais básicos, como pães e sabão.
… A vida é igual um livro. Só depois de ter lido é que sabemos o que encerra. E nós quando estamos no fim da vida é que sabemos como nossa vida decorreu. A minha, até aqui, tem sido preta. Preta é a minha pele. Preto é o lugar onde eu moro (p. 167).
Ela também divide com o leitor a dificuldade de educar os filhos Vera Eunice, José Carlos e João e mantê-los seguros em um ambiente que considera hostil e repleto de más influências.
Vemos ainda a aversão de Carolina em relação à favela (o quarto de despejo) e aos vizinhos, a quem ela se refere como “favelados”, aqueles que aparecem em seu diário como pessoas que não sabem se portar nem respeitar o espaço do outro, além de brigarem com constância entre si.
[…] Os favelados estavam na rua apreciando a briga da Leila e da Petita com uma negrinha que apareceu por aqui. Mas eu já estou enfastiada de brigas. É tantas brigas na favela! (p. 185).
A exposição do comportamento dos vizinhos, inclusive, causou um desconforto para Carolina na comunidade. Ela mesma menciona, no diário, a forma como alguns moradores reagiram ao lerem a publicação da revista O Cruzeiro.
Os relatos de Carolina emocionam e fazem refletir. É triste acompanhar sua angústia diária e a incerteza sobre a possibilidade de oferecer alimentos aos filhos no dia seguinte — sentimentos que a levam a pensar, por vezes, em acabar com a própria vida e a das crianças. É ainda mais triste perceber que muita coisa permaneceu inalterada no Brasil do final da década de 1950 para cá (aliás, estamos retornando ao passado nos últimos anos).
… Hoje não temos nada para comer. Queria convidar os filhos para suicidar-nos. Desisti. Olhei meus filhos e fiquei com dó. Eles estão cheios de vida. Quem vive, precisa comer. Fiquei nervosa, pensando: será que Deus esqueceu-me? Será que ele ficou de mal comigo? (p. 174).
Mas, mesmo com a sensação de não ter outra opção e com a companhia insistente da fome, Carolina se move pela esperança de publicar seu livro e retirar seus filhos daquele lugar e lhes dar uma vida melhor.
Acredito que outra autora ou outro autor poderia escrever sobre o dia a dia na favela, mas ninguém o faria tão bem quanto alguém que lá viveu — e é admirável a forma como Carolina Maria de Jesus se expressa e revela um tom poético, por meio de uma linguagem simples e apesar de sua frágil instrução.
Obs.: Esta resenha foi selecionada para fazer parte da comemoração Shelfie Day da editora educativa Twinkl, com o objetivo de incentivar a leitura no Brasil.
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