23 de julho de 2020

3 Comentários

A lunática das listas

Por Janete Marques

Levar as crianças à escola, pegar a fantasia da Ayo na costureira, ir à apresentação das crianças às 18h, marcar consulta no dentista para Zuri, marcar consulta no ginecologista, passar no mercado, entregar os livros na biblioteca, terminar de fazer os planos de aula da próxima semana, corrigir as provas, entregar os trabalhos do 7º ano, transferir o dinheiro para minha mãe.

Preciso confessar, sou viciada em listas. Tem gente que quando acorda faz prece, oração, ioga, lê “Minutos de sabedoria”. Eu não. Eu faço listas. Elas me dão a sensação de que estou no controle. Sinto que sou o ser humano mais organizado do mundo. Não, não sou. Parece exagero, né? Talvez. Mas a minha vida só funciona com as abençoadas listas. Nem sei quando me tornei a lunática das listas. Acho que foi depois da maternidade. A cobrança e o julgamento por ser mãe solteira… Não, mãe solteira não. Mãe solo. Só mãe mesmo. Esses dias li numa revista que maternidade tinha  a ver com ter filhos e não com estado civil. Gostei. Onde estava? Sim. Depois da maternidade me tornei essa pessoa que precisa anotar tudo num papel. O tempo era o vilão a ser combatido. Ele teimava em passar ligeiro e eu tinha que ser mais rápida que ele. Que comecem os jogos!

Minhas listas estavam divididas em níveis diante do grau de dificuldade. A nível 1, para as atividades mais fáceis, escrevia com caneta azul. Em média tinha a duração de um dia. Vencia com facilidade. A nível 2 era mais desafiadora. Escrevia com a caneta na cor vermelha. Essa eu fazia para durar uma semana. Finalizar uma lista vermelha dava um prazer incomensurável. Não, nem chocolate nem sexo proporcionavam tanto deleite quanto uma lista nível 2 finalizada. A Mulher Maravilha tinha o chicote que obrigava as pessoas a falarem a verdade. Poder legal! Mas com uma lista cumprida eu tinha o controle da minha vida.

Mas veio a pandemia, a quarentena. Ficar em casa era fundamental para conter o vírus. Sem sombra de dúvida, ele era o grande antagonista dessa história, mas, além dele, eu tinha que combater o tempo. Ele continuava a ser o meu oponente. Com uma diferença, antes pela escassez, agora pelo excesso. Poder ficar em casa era privilégio para alguns. Eu fazia parte desse seleto grupo de “alguns”. Vi todos os dias se transformando em domingos, e domingos não tinham listas. A vida estava acontecendo toda dentro de casa e eu não estava no controle.

 “O passado é uma roupa que não nos serve mais” tocava no som. Belchior falando comigo. Não, claro que não. Mas o verso só pertence ao poeta quando ainda está cativo em sua consciência, depois disso ele é de todos ou de ninguém. E eu tomei posse da “Velha roupa colorida”. E me pus a pensar que a vida como eu a conhecia não existia mais. É isso! Precisava ressignificar as minhas listas.

Peguei papel e uma caneta verde, estava começando uma lista nível 3. Uma lista para quem tem tempo de fazer tudo que sempre quis, mas que não fazia por não ter tempo. Belchior ainda cantava e eu fiquei fuçando na memória atrás de lembranças de quando tinha sido a última vez que apreciei uma música. Ouvir, eu ouvia. Mas sentir, fazia tempo. “Não leve flores” tocou e meu corpo decidiu dançar. E assim a minha lista nível 3 foi criando forma.

1. Escutar música com os ouvidos da alma;

2. Dançar com corpo inteiro;

3. Ler aquele livro de Conceição Evaristo e todos os outros;

4. Meditar ou só tentar;

5. Ter tempo para mim;

6. Cozinhar junto com as crianças (ou ver a Zuri cozinhando);

7. Voltar a desenhar;

8. Jogar videogame com Ayo e Zuri;

A lista estava boa, mas incompleta. Uma lista que se preze tinha no mínimo dez itens. Faltava algo… Um toque… Uma notificação no celular e mais um item para minha lista. Dois na verdade.

9. Escrever uma crônica para um concurso;

10. O que escrever? Fazer uma lista.


*****

Janete Marques é historiadora, contadora de histórias e professora da educação básica. Como contadora já se apresentou em escolas e eventos culturais com histórias de sua autoria. Ministra oficinas literárias com o objetivo de despertar no outro o gosto pela leitura, criando relações de afetividade com os livros. É mãe de duas meninas. Ao ver a relação das suas filhas com o mundo da leitura, imaginou que elas poderiam ser personagens do seu primeiro livro infantil: Um livro pra Nini… Um livro pra Nana… (2019).

A crônica A lunática das listas foi classificada em terceiro lugar no Concurso literário Dois anos de Histórias em mim, promovido pelo blog.

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3 Comentários

  • Delisette
    01 agosto, 2020

    Excelente ler preenche muitos vazios de essas leituras sao ótimas. Quem diria que a nossa professoriinha ir ia ter tanto sucesso. BOA SORTE NA SUA ESCOLHA JANET E. PARABENS

  • Delisette
    01 agosto, 2020

    Quem diria que que a nossa professoriinha

  • Eliete Morais
    24 julho, 2020

    Sou suspeita em relação a esse texto, Pois sou lunática tb com lista ?adorei, parabéns❣

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