É horrível lembrar que criaturas humanas tratem a seus semelhantes assim e que não lhes doa a consciência de levá-los à sepultura asfixiados e famintos! (p. 103).
Dedico a resenha de hoje a quem sonha com a liberdade e a igualdade entre os seres humanos, não importando sua cor, seu gênero e seu lugar de origem.
Maria Firmina dos Reis, maranhense, negra e autodidata, publicou Úrsula em 1859 sob o pseudônimo “uma maranhense”. No prólogo, apresentou o livro como “mesquinho e humilde”, que “passará entre o indiferentismo glacial de uns e o sorriso mofador de outros” (p. 25), desculpando-se por seu atrevimento em escrever. E acrescentou:
Sei que pouco vale este romance, porque escrito por uma mulher, e mulher brasileira, de educação acanhada e sem o trato e conversação dos homens ilustrados […] (p. 25).
Talvez isso explique o silêncio em relação ao romance, embora seja ele “o primeiro romance abolicionista de autoria feminina da língua portuguesa”, como afirma Duarte (2018a, p. 15, grifos do autor), e ainda “o primeiro romance da literatura afro-brasileira” (Duarte, 2018b, p. 230, grifos do autor).
Entre outras produções, Maria Firmina dos Reis também escreveu os contos Gupeva (1861) e A escrava (1887), o livro de poesias Cantos à beira-mar (1871), textos jornalísticos e um diário, conhecido como o Álbum.
Úrsula é órfã de pai, sua mãe padece pobre, enferma e entrevada, e o único parente da moça é um tio temido. Seu destino então não reserva muitas alegrias. Mas Tancredo surge na história, socorrido e levado à fazenda de mãe e filha por Túlio, um escravo negro. É um rapaz de posses e se apaixona por Úrsula, que corresponde a seu sentimento.
Túlio encontra Tancredo na estrada, desmaiado e ferido, sob um cavalo morto. Havia caído ali com o peso da decepção e da traição. Túlio se compadece da situação do cavaleiro e o ajuda, e sua atitude lhe rende uma amizade e a liberdade, pois, em agradecimento, Tancredo paga a alforria do novo amigo. Assim, “Túlio obteve pois por dinheiro aquilo que Deus lhe dera, como a todos os viventes” (p. 47).
Ao ser ajudado, Tancredo se dirige a Túlio com um gesto amistoso, mas este tenta se distanciar, explicando que, por ser escravo, não pode ser chamado de amigo por um senhor. Tancredo o repreende, afirmando que não há diferença entre eles além daquelas criadas pelos próprios humanos.
[…] dia virá em que os homens reconheçam que são todos irmãos. Túlio, meu amigo, eu avalio a grandeza de dores sem lenitivo, que te borbulha na alma, compreendo tua amargura, e amaldiçoo em teu nome ao primeiro homem que escravizou a seu semelhante (p. 35).
Maria Firmina apresenta os dois homens (um jovem rico e um escravo), com condições de vida tão distintas, como iguais que são, duas almas generosas, como o título do capítulo sugere.
Outra personagem de grande relevância no romance, apesar de ser coadjuvante, é Mãe Susana, uma velha africana que narra a Túlio sua prisão e sua vinda para o Brasil, acorrentada e torturada no porão de um navio; narra a saudade de sua pátria, de sua filha, de seu esposo e da tranquilidade de sua vida em seu país.
E logo dois homens apareceram, e amarraram-me com cordas. Era uma prisioneira – era uma escrava! Foi embalde que supliquei em nome de minha filha, que me restituíssem a liberdade: os bárbaros sorriam das minhas lágrimas, e olhavam-me sem compaixão (p. 103).
Úrsula é mais do que uma história de amor (ou um triângulo amoroso). Perdoados os exageros próprios do Romantismo (o sofrimento amoroso que pode levar à morte, a religiosidade, a culpa), é evidente a forte crítica à escravidão. Maria Firmina dos Reis não romantiza a chegada dos africanos ao Brasil: não insinua que eles chegaram por vontade própria, como alguns ainda defendem, mas forçados a se separar de seus lares e de sua família, destituídos de sua liberdade.
Em tempos em que se sustenta o esquecimento do passado, Úrsula é um livro necessário para se compreender aquele período histórico, que não pode ser simplesmente removido de nossa memória. Suas consequências sobrevivem e jamais serão superadas se continuarmos fingindo sua inexistência.
Referências:
DUARTE, Eduardo de Assis. Maria Firmina, mulher do seu tempo e do seu país. In: Úrsula: romance. Belo Horizonte: Editora PUC Minas, 2018a, p. 9-22.
DUARTE, Eduardo de Assis. Úrsula e a desconstrução da razão negra ocidental. In: Úrsula: romance. Belo Horizonte: Editora PUC Minas, 2018b, p. 209-236.
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