
Não me apaixonei por Mrs Dalloway, de Virginia Woolf, ou por A hora da estrela, de Clarice Lispector. Abandonei A cidade e as serras, de Eça de Queiroz, e O processo, de Franz Kafka.
Se você continua aqui, não me julgou mal por meu primeiro parágrafo. Mas diz a verdade: o que você está pensando de mim aí?
Já percebeu que, se alguém insere os nomes desses autores e dessas autoras e seus livros numa afirmação desfavorável, o seu interlocutor quase sempre torce o nariz? É porque eles fazem parte de uma categoria chamada “clássicos”.
Não sei você. Eu logo imagino algo intocável toda vez que escuto a palavra “clássico”. Para tirar a dúvida, fui buscar o significado no dicionário:
- Diz-se da obra ou do autor que é de estilo impecável e constitui modelo digno de admiração.
- Que constitui modelo em belas-artes.
- Que obedece a certo padrão de técnica ou de estilo.
- Autor de obra literária ou artística digna de ser imitada.
Minha imaginação não está de todo errada, pois é fora do comum algo ou alguém que representa um modelo, um padrão a ser admirado e seguido. Penso nos autores e autoras que citei no início e também em Machado de Assis, José de Alencar, Dostoiévski, Luís de Camões etc., todos eles escritores e escritoras que, ao longo da história, ganharam o posto mais importante daquilo que se costuma chamar de alta literatura, sendo aclamados, divulgados, estudados.
Mas quem definiu essa posição? Hunt (2010), no livro Crítica, teoria e literatura infantil, ressalta que os clássicos são assim considerados porque determinado grupo (um grupo de poder, evidentemente) assim o decidiu com base em seu ponto de vista, seus padrões, seus interesses.
Tais autores e autoras e suas obras merecem ser conhecidos e admirados. E todo mundo tem o direito de acessar esses trabalhos. É razoável, no entanto, torná-los objetos sagrados e impor essas leituras como as únicas válidas? É justo menosprezar os leitores e as leitoras que não apreciam ou não conhecem essas obras? Seria incoerente da minha parte — uma escritora iniciante — levantar tal bandeira. Defendo a liberdade de leitura e de opinião.
Repito o que escrevi aqui outras vezes: a leitura é um ato pessoal. Uma obra literária não vai me dizer a mesma coisa que diz a outra pessoa, mesmo que tenhamos características parecidas. O encontro com o livro se baseia tanto nos gostos pessoais do leitor ou da leitora, quanto na sua experiência de vida, na sua maturidade, na sua bagagem de leitura e em seu estado de espírito no momento em que lê. Portanto, podemos até mudar o nosso conceito sobre uma obra ao revisitá-la um tempo depois; pode ser que Mrs Dalloway, A hora da estrela, A cidade e as serras e O processo se tornem meus livros preferidos algum dia.
Tomando emprestadas as ideias de Andruetto (2012) e Hunt (2010), entendo que cada leitor ou cada leitora seleciona o que é bom ou ruim e faz sua própria interpretação do que lê. De acordo com Andruetto, os acadêmicos precisam repensar por que classificam determinados autores ou obras acima de outros autores e obras, e a cada leitor e cada leitora deve ser permitido aceitar ou contestar o cânone, conforme escolhas e vivências pessoais.
Não contesto a recomendação de leitura dessas grandes obras literárias (especialmente para quem escreve). Concordo com as palavras de Bencini (2003):
Só as obras bem escritas passam para a posteridade, tornam-se fonte de conhecimento — e não apenas de entretenimento — e, enfim, podem ser chamadas de clássicos. Seus autores são verdadeiros artistas. Eles conseguem organizar bem seus pensamentos, esculpem a língua com cuidado e estilo e põem em foco os principais conflitos da existência humana. Assim, ao experimentar as emoções de diversos personagens consagrados, o leitor busca respostas para a própria vida, compreende melhor o mundo e se torna um escritor mais criativo.
Não incorre em pecado, entretanto, quem não lê os clássicos, não se agrada deles ou abandona a leitura de uma dessas criações. Um leitor ou uma leitora não é inferior se não for arrebatado(a) por Dom Casmurro ou Os sertões. Um leitor ou uma leitora não é menor se seu interesse se concentra em livros contemporâneos, populares, de autores e autoras desconhecidos. Até porque esses outros livros podem ser (quem sabe?) a preparação do leitor ou da leitora para buscar os clássicos. No meu ponto de vista, daremos um passo rumo à democratização da leitura quando vencermos esse preconceito.
Uma campanha em defesa do livro para todos e todas tomou as redes sociais no último mês (e eu fiz questão de participar). O argumento é que todo mundo quer e deve ler. Mas de que livro estamos falando? De que leitura? Somente dos clássicos? Se for, isso é um tanto contraditório. A luta pelo direito à leitura não combina com a intolerância. Não se conquistam leitores e leitoras com críticas negativas e arrogância.
Referências:
ANDRUETTO, María Teresa. Por uma literatura sem adjetivos. São Paulo: Pulo do Gato, 2012.
BENCINI, Roberta. Por que ler os clássicos. Nova Escola, 1 abr. 2003. Disponível em: https://novaescola.org.br/conteudo/2598/por-que-ler-os-classicos. Acessado em: 25 maio 2021.
HUNT, Peter. Crítica, teoria e literatura infantil. São Paulo: Cosac Naify, 2010.
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