09 de setembro de 2020

2 Comentários

A leitura como pré-requisito

Planejei escrever a respeito das dificuldades da escrita por mulheres. Até retirei da estante Um teto todo seu, de Virginia Woolf, para uma nova leitura, mas nada me veio sobre o que queria escrever. Um trecho do livro me chamou a atenção e me levou para outro rumo.

Quase no final do livro, Virginia Woolf defende:

[…] um gênio como o de Shakespeare não surgia entre pessoas trabalhadoras, sem edução formal, servis. […] Não surge hoje entre as classes trabalhadoras (p. 73).

Em um instante me lembrei daquela famosa afirmação que estabelece a leitura como um pré-requisito da escrita: para escrever bem, é preciso ler.

Tenho a impressão de que a maioria dos escritores e das escritoras formou-se em áreas relacionadas à escrita ou pelo menos se encontrou com a leitura ainda no berço. Sinto-me um pouco deslocada quando leio biografias assim, pois não fiz nem uma coisa nem outra.

Como já contei aqui, desenvolvi o hábito da leitura apenas na idade adulta. Na infância eu poderia ser identificada como uma menina que escrevia. Isso sim eu fazia desde sempre, talvez influenciada pelas telenovelas (outro dia recordei que eu sonhava em escrever uma delas).

Só não seria honesto me descrever como alguém que gostava de ler. A leitura era uma atividade muito rara, quase sempre relacionada aos trabalhos escolares. Não me lembro de programas de incentivo à leitura ou de doação de livros de literatura naquele tempo.

Somente com mais ou menos 25 anos descobri o prazer de ler. Hoje entendo que há momentos em que lemos para nos informar e aprender, mas, mesmo nessas ocasiões, em que a leitura talvez não seja prazerosa, ao menos deve ser significativa.

Foi um pouco depois dessa época que resgatei a paixão pela escrita (que eu havia escondido em um canto da memória). Escrevi uma história e ingenuamente pensei que estava pronta para uma publicação.

Aos poucos, fui percebendo que me falta essa bagagem que vejo nas histórias de vida de escritores e escritoras. Também me dei conta de que o único meio de alcançá-la seria exercitando a leitura.

Sei que não acompanharei os leitores precoces nem terei tempo de ler a infinidade de obras que quero (ou preciso) ler. Mas quem disse que estou numa competição? Minha comparação deve ser comigo mesma; devo focar nos avanços que conquistei; nos ganhos que o hábito da leitura (mesmo tardio) tem me proporcionado.

Tenho consciência de que incontáveis pessoas país afora tiveram (ou têm) uma formação tão deficiente quanto a minha e não possuem o hábito de ler nem acesso a livros. Não é raro também que o valor da leitura seja subestimado. Para muitos, ler um livro é uma atividade supérflua.

Isso mostra que o livro é mais que um bem material. É um bem cultural — não só pelo seu conteúdo; também pelo significado do objeto em si para diferentes sujeitos, de diferentes regiões e classes sociais.

Por isso, admito que o tal ministro tem razão ao afirmar que o livro é um artigo da elite. O que lhe faltou foi apontar uma solução para esse problema: o que fazer para que todo mundo tenha a chance de ler livros? O que fazer para entranhar a leitura na nossa cultura?

Taxemos os livros — foi a saída apresentada, uma fala nada inesperada; à altura deste momento em que ninguém mais parece se envergonhar de assumir posicionamentos esdrúxulos, antidemocráticos, elitistas.

Não é necessário ser especialista no assunto para declarar que carecemos de iniciativas que estimulem a leitura dentro e fora das escolas, em meio a pessoas das diversas gerações. E não basta pedir às famílias que baixem livros e materiais da internet nem transferir para elas a completa responsabilidade pela formação do hábito da leitura nas crianças e nos jovens. Não se pode ignorar que grande parte dos adultos de hoje não teve esse incentivo na infância (muitos sequer foram alfabetizados) e não possui condições financeiras de montar um acervo literário em casa. Também não são suficientes as ações particulares. A ação deve ser governamental.

Para que precisamos de leitores? — alguém pode questionar — Qual é a importância disso? Por acaso, queremos que todo mundo seja escritor?

Nem todo mundo desejará ser escritor ou estará apto a essa atividade, mesmo que leia dezenas de livros por mês. O ato de ler, porém, não serve apenas a quem pretende assumir a escrita como carreira. A leitura nos abre a mente, nos permite entrar em contato com culturas e realidades desconhecidas, nos possibilita compreender o mundo e nós mesmos, nos ajuda a nos expressar melhor.

Não parece, entretanto, que exista interesse do governo em investir em leitura — a julgar pela declaração do ministro, o objetivo parece justamente o contrário. Mas o que poderíamos esperar? Esse não é o governo da cultura, das artes, da educação, do desenvolvimento humano. Esse é o governo das armas, da morte, do atraso. E, como ninguém nega, se fôssemos um país de leitores, não estaríamos onde hoje nos encontramos; seríamos conscientes, críticos, livres.

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2 Comentários

  • Eliete Morais
    10 setembro, 2020

    É Eri, esse é um daqueles momentos na história, que serão contados apenas no futuro. Triste! Vão taxar os livros, para deixar o acesso mais difícil, e assim continuar o plano de alienação. Muito revoltante.

    • Eriane Dantas
      14 setembro, 2020

      Sim, triste demais. Espero que consigamos reverter isso.

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