18 de janeiro de 2020

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O cara lá de cima vai me dar

Por Eriane Dantas

“Tudo o que eu quiser o cara lá de cima vai me dar”, a Xuxa nos garantia.

Quantos de nós não fomos enganados por essas palavras? Quantos de nós não acreditamos que bastaria um pensamento positivo ou uma oração para se realizarem nossos sonhos? Ah, se a vida fosse assim tão simples; se fosse verdadeira a premissa “eu quero, logo posso”, mais sonhos deixariam de ser meros sonhos.

Por outro lado, se o querer não fosse tão valorizado, menos gente pensaria que pode fazer qualquer coisa só para satisfazer sua vontade. Porque nossa vontade não é soberana e esbarra em milhões de outras vontades, nas possibilidades, nas normas.

Não. Não coloquemos na Xuxa a culpa de nossas expectativas. Ainda hoje planta-se nas cabeças (e não só dos baixinhos) que querer é poder. E há ainda aqueles que declaram para todo mundo os presentes do cara lá de cima, como prova de serem amados por ele.

É aí que fico me perguntando: aquelas pessoas que vivem, por exemplo, em pobreza extrema queriam mesmo isso para suas vidas ou Deus ama mais os ricos do que os pobres?

Não me surpreenderia se alguém respondesse afirmativamente às duas perguntas, pois muitas pessoas palpitam que os mais pobres não querem sair da situação de vulnerabilidade (porque, segundo elas, preferem depender da ajuda dos demais) e declaram que a desigualdade é plano de Deus.

O curioso é que, não raramente, os defensores da confiança na providência divina também creditam ao seu esforço pessoal a responsabilidade exclusiva pelo sucesso.

Então fica tudo meio confuso: eu devo querer e me esforçar ou basta aguardar aqui sentada a ação do cara lá de cima?

Quando se trata do outro, exige-se que se levante, que se supere, que lute contra qualquer intempérie sem reclamar, sem esperar auxílio de quem quer que seja. Mas, se interessar, pode-se até jurar que Deus devolverá em dobro aquilo que for entregue para ele (o rendimento aqui é muito maior do que o de qualquer aplicação financeira).

Se observarmos atentamente, veremos que as narrativas do esforço pessoal e do presente de Deus servem unicamente para engrandecer o ego dos já privilegiados. Com uma, eles pintam-se de vitoriosos e não veem necessidade de informar, mesmo que em letras miúdas, que só alcançaram sua posição devido às oportunidades que tiveram (afinal que importância pode ter esse detalhe?). Com a outra, mostram ao mundo que são especiais, já que são mais amados pelo criador do que a maioria da população mundial, sendo escolhidos por ele, em seu plano de desigualdade, para estar no topo da pirâmide.

A realidade é bem diferente, porém (e, por isso, ninguém em posição desfavorecida deveria aderir ao discurso da meritocracia). Esforço, força de vontade e oração não garantem o sucesso (seja lá qual for o conceito de sucesso, que, na sociedade do materialismo, eu desconfio, deve ser ter milhões de dólares na conta bancária, não importando à custa de que e de quem eles foram parar lá).

Imagine-se uma corrida (uma comparação utilizada com frequência nesse caso, mas muito ilustrativa). Se um dos corredores largar na frente e tiver passado mais tempo do que os demais em preparação, terá mais chances de chegar em primeiro lugar, enquanto muitos de seus concorrentes talvez nem alcancem a linha de chegada.

Essa ideia pode ser transferida para a formação escolar, para o mercado de trabalho, para investimentos financeiros e tudo mais.

Antes de elaborarmos essa conclusão, entretanto, nos envergonhamos por não alcançar aquilo que nos garantiram que seria fácil conquistar, aquilo que dependia só de nossa luta ou da mão de Deus. Porque no mundo do mérito próprio, um mundo tomado por coaches de qualquer coisa, é sinal de preguiça ser pobre, é sinal de comodismo não ter uma ambição desmedida, é sinal de fracasso não “chegar lá”.

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