08 de janeiro de 2020

2 Comentários

Mudança

Por Eriane Dantas

Uma mãe e as duas filhas iam se mudar de Teresina, no Piauí, para Brasília. Lá encontrariam o homem que era marido de uma e pai das outras duas. Ele já morava na Capital Federal e agora mandava buscar a família. Não dava mais para ficar longe das três mulheres, tampouco dava para o casal sustentar as despesas em duas cidades.

O marido e a mulher então juntaram o dinheiro para a mudança. Seria mais econômico levar embora os móveis em vez de comprar tudo de novo. Sabe-se lá quanto custaria comprar geladeira, fogão, sofá e camas novas, ainda mais numa cidade em que se dizia que para comprar qualquer coisa era necessário vender o que já se possuía.

A mãe foi atrás de um caminhoneiro disposto a fazer a mudança para tão longe. Não encontrou um por ali, mas recebeu a indicação de um homem que tinha acabado de chegar de São Paulo e voltaria para lá em poucos dias, com o caminhão vazio.

A mulher então acertou a mudança com o tal caminhoneiro. Houve apenas um impasse, uma choradeira das meninas, para ser mais exata, depois que a mãe anunciou a impossibilidade de levar o cachorro, que estava junto da família havia tanto tempo e mais parecia um ser humano. Elas três pegariam um ônibus depois da saída da mudança e não haveria condições de levar o cãozinho nem no ônibus nem no caminhão. Já iam esconder o jabuti em algum canto do veículo. Infelizmente o cachorro teria que ficar aos cuidados de algum vizinho.

Foi aí que o caminhoneiro falou:

— Se a senhora, as meninas e o cachorro quiserem ir com a mudança, não tem problema. Vou sozinho mesmo, tem muito espaço pra vocês. Vocês vão na cabine comigo, e o cachorro vai atrás com os móveis e o jabuti. Tem um buraco aqui que vai permitir a ventilação pro cachorro.

A mulher olhou desconfiada para o homem. Não. Ela não poderia sair em uma viagem de mais de 1.600 quilômetros com um desconhecido, ainda mais levando as filhas. Ninguém sabia quem era ele. Ninguém sabia realmente de onde ele tinha saído. Ninguém sabia se não tinha cometido crimes lá por onde tivesse andado. Não, não e não. Definitivamente não.

Deu então uma olhada no dinheiro que guardara na carteira.  Era tão pouco e talvez nem desse para comprar as três passagens de ônibus. Se desse, era provável que não sobrasse um tostão para elas se alimentarem no caminho. Pensando melhor agora, ele tinha sido tão educado e prestativo. Não tinha cara de perigoso.

— Está bem — ela respondeu de supetão, com as pernas bambas. — A gente vai com o senhor.

Colocaram o cachorro no fundo e fecharam a porta de trás. Agora não tinha mais jeito. Era hora de ir. Despediram-se dos vizinhos, que se juntaram ali para dar adeus.

Antes de entrar no caminhão, a mulher rezou um Pai Nosso e uma Ave Maria e se benzeu três vezes. “Que Deus nos acompanhe”, pensou. Mas, para reforçar a proteção divina, guardou um canivete no bolso e foi a primeira a entrar na cabine. Assim ficaria entre o motorista e as meninas.

Quando o caminhoneiro deu a partida, ela segurou o canivete em seu bolso com força, pronta para se defender caso ele tentasse qualquer coisa.

O simpático motorista ia falando, falando e falando: o clima do Piauí era muito diferente daquele de São Paulo; eles enfrentariam três dias de viagem até Brasília; os buracos na estrada estavam cada vez maiores. E a mulher, com tanto medo, mal respondia. Sua face estava rígida e a boca, travada. Então só era capaz de dizer “sim” ou “não”. Também não parava de ensaiar, em pensamento, os movimentos que faria se fosse obrigada a enfrentar aquele homem.

Lá pelas tantas, o caminhoneiro começou a descrever a própria vida, a esposa, o filho pequeno, a saudade que sentia quando saía em longas viagens. Falou tanto na saudade que as lágrimas não se envergonharam de sair dos olhos.

A mulher ficou menos tensa. Um homem perigoso não mencionaria a família com tanto carinho. E foi ficando menos desconfiada ainda quando o escutou falar de Deus e parar o caminhão em um posto de gasolina, com os olhos encharcados, para procurar um orelhão do qual pudesse ligar para casa.

Seu medo parecia ter partido e isso destravou sua face e seus lábios. Agora já conseguia conversar. E os dois não passaram nem trinta segundos em silêncio no restante do dia. Ninguém diria que ali existia uma amizade de décadas.

Quando a noite chegou e o caminhoneiro avisou que pararia para descansarem, a mulher pediu que ele estacionasse próximo a uma pousada. Elas dormiriam por lá. Ele então propôs:

— Por que vocês não dormem no fundo do caminhão? Os colchões de vocês estão lá mesmo. Não se preocupe que eu vou dormir aqui na cabine.

Dessa vez, ela aceitou a proposta prontamente. Após um dia de conversas, sentia que conhecia aquele caminhoneiro da vida toda. Que gentil ele era! E também era religioso. Dava para sentir que não faria nada com elas. Claro, ela também lembrou dos escassos recursos que levava na bolsa, fez as contas e viu que aquela economia cairia bem. Sorriu para o homem, agradecida.

Assim que as três entraram e arrumaram os colchões para dormir, ela empurrou o sofá até a porta, empilhou um monte de móveis pequenos e objetos sobre ele e amarrou o cachorro bem próximo dali, pronto para avançar em qualquer intruso. Depois colocou seu colchão ao lado dele e deitou-se apalpando o canivete. Não pregou o olho a noite toda.

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2 Comentários

  • Ana Luiza
    03 fevereiro, 2020

    Eri, lendo sua publicação, lembrei da minha saída de Jequié, na Bahia, quando tinha 7 anos de idade e minha mãe também estava de mudança para a capital com seus quatro filhos. A diferença é que havia nenhum marido à sua espera.
    Também seguimos o trajeto de caminhão e eu, infelizmente, não tenho lembrança dos detalhes dessa travessia. Obrigada por despertar essa recordação em mim.

    • Eriane Dantas
      07 fevereiro, 2020

      Oi, Ana!
      Acho que você nunca contou que também viajou no caminhão de mudanças. Que interessante!

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