16 de novembro de 2019

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Cartas para Marilu (n° 8)

Sexta-feira, 5 de julho de 1985.


Marilu,


Não sei como recebeu minha última carta, mas suponho que ler aquelas palavras tenha sido doloroso, pois foi inevitável transferir minha dor para o papel ao traçar cada letra. Acredite em mim, por favor, minha filha: não era meu objetivo machucar você.

Naquele tempo, de um momento para outro, veio à minha mente que eu enlouqueceria se continuasse mais um dia na casa, e essa impressão aumentava a cada dia. Eu a guardei, bem escondida dentro de mim, porque deixá-la à solta não me traria nada além de olhares desconfiados. Ninguém estava preparado para entendê-la — nem eu mesma.

Antônio não percebia minha insatisfação, meu silêncio, meu distanciamento. Aquela menina com quem ele havia se casado tinha partido e ele não notava, mesmo que, por vezes, parecesse me observar. Eu não era o assunto de nossas raras conversas, que giravam em torno de seu crescimento.

Enquanto isso eu me recriminava por não sentir mais a alegria de antes ou por querer mais do que já possuía. Isso não parecia fazer sentido algum e me esforcei para esquecer esses pensamentos. Mas a rotina e a indiferença de Antônio só fizeram me sentir pior. Passei a pensar que nem o amava mais ou que nunca o tivesse amado.

A única parte da vida que me alegrava era você. Minha garotinha era quem me mantinha sã apesar do desânimo. Era você quem ainda me fazia sorrir, embora nem com você eu agisse como antes. Aquela inexplicável tristeza havia cegado até meus olhos apaixonados por suas gracinhas, por seu carinho e por sua curiosidade por compreender o mundo.

Pensei, em várias ocasiões, em confessar isso a seu pai, porém a coragem fugia quando ele chegava. Eu não tinha a prática de falar dos meus sentimentos e não conhecia nem mesmo as palavras que poderia utilizar. E já imaginava onde essa confissão nos levaria: ele desconfiaria da existência de um segundo homem na minha vida; acabaríamos brigando; e, acusada de adultério, eu seria julgada pelos vizinhos e pela família, sem direito a defesa.

Mas o silêncio durou pouco. Com o passar das semanas, dos dias, das horas, minha permanência ali não se sustentou mais. Algo me empurrava a dizer o que sentia, de qualquer jeito, com as palavras que chegassem a meus lábios. Quem sabe algo melhorasse em mim e em nossa relação se eu desabafasse? Elaborei então as frases, respirei e anunciei uma conversa delicada assim que Antônio entrou na casa. Ele me olhou com seriedade e se dirigiu à cozinha, a fim de se servir com o jantar, como se não levasse a sério meu aviso.

Como previ, ele não acreditou na minha explicação e supôs que eu estivesse envolvida com outro homem. Quando eu disse que não ficaria mais ali, ainda mais depois daquela conversa, ele me lembrou que eu não tinha para onde ir ou como me sustentar.

Não pense que estou culpando seu pai, filha. Levei alguns anos para entender que aquele foi um dia difícil para ele também. Se meus sentimentos não eram compreendidos por mim mesma, como seriam por alguém que não os sentia? Tudo o que ele queria era manter nossa família como antes, enquanto eu, desejando uma alteração, mudei nossa vida inteira.


Com amor,

Neusa

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