17 de setembro de 2019

0 Comentários

Existem temas inadequados para a literatura infantil e juvenil?

Livro para crianças e jovens pode abordar temas como sexualidade, violência, uso de drogas, morte e depressão?

Posso apostar que muita gente responderia a essa pergunta, de imediato, com um NÃO, mas podemos refletir um pouco aqui antes de chegarmos a uma conclusão.

A literatura para crianças e jovens é normalmente vista como um instrumento pedagógico, por meio do qual os leitores aprendem a moral, os bons costumes e os conteúdos escolares. Por isso, não é difícil encontrar livros ensinando boas maneiras ou temas como números, letras e cores.

Não quero dizer que acho errado pensar no potencial de ensino dos livros, pois eles realmente ensinam muitas e muitas coisas, inclusive aos adultos. Contudo, eles não são só isso; ensinar não é sua razão de ser. Devemos pensar a literatura para criança e jovens da mesma forma que pensamos a literatura adulta: ela não é feita para ensinar, mas para encantar, causar curiosidade, reflexão, surpresa, emoção, divertimento etc. Ela é uma forma de arte.

Portanto, não precisamos descartar aqueles livros (dependendo dos ensinamentos que carregam). Porém defendo o acesso das crianças e dos jovens a textos diversificados, o que hoje não é difícil de alcançar. Encontra-se nas livrarias uma grande variedade de livros infantis e juvenis (basta dar uma olhada mais atenta): histórias fantásticas, aventura, lendas, mitos, fábulas, contos de fadas, histórias realistas, com discussões políticas, filosóficas, biografias e outras tantas possibilidades.

O problema, como eu escrevi há duas semanas, é que somos nós, adultos, que escolhemos pelas crianças e pelos jovens os livros destinados a eles, pois, conforme Hunt (2010):

As crianças não têm liberdade de escolha; podem ter liberdade para escolher dentre o que há para ser escolhido, mas não é a mesma coisa. […] E eu iria mais longe: quando uma criança passa a escolher, sua capacidade de escolha já terá sido moldada pela ideologia de seus mentores (p. 208).

Na seleção de livros para as crianças e os jovens, é comum mães, pais, professoras, professores e a sociedade em geral serem enganados pela ideia de que as crianças e os jovens não compreendem textos com uma linguagem mais complexa ou de que não estão preparados para lidar com temas considerados tabus. Muitos desses adultos têm uma postura conservadora em relação aos livros infantis e juvenis, acreditando que as crianças são inocentes e que, por isso, devem ler livros também inocentes.

Mas, como Hunt (2010) vem nos dizer, mesmo aquelas histórias que parecem mais despretensiosas não estão livres de alguma ideologia e, por vezes, a escondem em uma aparência falsa. Porque não existe neutralidade (nem na literatura nem em qualquer área em que o ser humano atue), embora tanta gente tente evocá-la.

Assim, mesmo com a variedade de livros de que falei, segue-se oferecendo às crianças e aos jovens histórias com a temática de sempre ou com a linguagem de sempre, aqueles livros considerados “apropriados”, que não apresentam qualquer traço de sofrimento, qualquer tema, personagem ou atitude que possam gerar questionamentos, como se pretendêssemos blindar essas crianças e esses jovens da vida real.

Prades (2012) alerta para o perigo dessa prática:

No mundo dos livros, “poupar”, “proteger” as crianças dos dramas da vida significa exercer uma censura prévia que não se exerce quando, por exemplo, se trata da televisão.

Ela tem razão. Não se controla com tanta rigidez o conteúdo dos programas de TV (e podemos acrescentar aqui a internet), que exibem, a qualquer hora do dia, cenas de violência e de sexo, discussões sobre suicídio, uso de drogas e outros temas controversos — tudo o que se condena com tanta veemência nos livros — e o fazem, em grande parte das vezes, de forma menos sutil e com menos cuidado estético.

É coerente essa diferença de atitude em relação aos livros? É coerente também querermos adiar a discussão de temas da realidade ou afastar a literatura infantil e juvenil dessa discussão?

Penso que não. Os livros para crianças e jovens não podem tratar, o tempo inteiro, de mundo encantados onde todos vivem felizes para sempre, já que vemos um mundo totalmente diferente ao passarmos pela porta de casa. Por isso, concordo com Prades (2012) quando ela afirma:

Estamos no terreno da literatura, cuja matéria-prima é a vida com suas mazelas, suas contradições, seus desafios, as perdas, o abandono, o racismo, a sexualidade… E a literatura, assim como a vida, não aceita encomendas.

E, se a matéria-prima da literatura é a vida, devem os livros se limitar a representar uma única forma de ser e estar no mundo? Devem eles continuar a mostrar apenas personagens brancos, heterossexuais e de classe média ou alta? Não há espaço para retratar a enorme diversidade que se apresenta em nossa sociedade?

Como disse aqui uma vez, o papel dos livros literários é nos levar para além do nosso mundo, ou seja, abrir nossas mentes para um mundo diferente do nosso. Isso porque, se a ideia for continuar no nosso próprio mundo, nem vale a pena ler.

Quanto a isso, Farias (2019) escreve:

A leitura na infância, especialmente de textos literários, permite que as crianças compreendam a língua como instrumento de fantasia; […] a que cria condições para a imaginação do outro, daquilo que nos parece estranho.

Dessa forma, a literatura infantil e juvenil é uma oportunidade de mostrar às crianças e aos jovens que a sociedade é formada por pessoas que realizam uma variedade de atividades; que existem outros jeitos de pensar, de ser, de levar a vida; que há, no país e no mundo, pessoas excluídas e marginalizadas e também aquelas que possuem mais riquezas que a maioria da população.

E só essa possibilidade de ensino do respeito às diferenças já deveria ser um incentivo para aqueles que enxergam os livros como ferramentas didáticas. Pode haver melhor forma de aprender a conviver com pessoas diferentes do que vê-las retratadas em livros literários?

Todavia, não é raro vermos exemplos de censura a livros infantis e juvenis, como os seguintes:

  1. A tentativa recente do prefeito do Rio de Janeiro de censurar o livro Os vingadores, a cruzada das crianças (2011) na Bienal do rio de Janeiro, devido a uma ilustração de um beijo gay.
  2. As manifestações, nas redes sociais, contra o livro O menino que espiava pra dentro (1983), de Ana Maria Machado, e contra a própria autora, justificando-se que a história estimula o suicídio.
  3. A retirada do livro Meninos sem pátria (1981), de Luiz Puntel, da lista de livros adotadas pelo Colégio Santo Agostinho, do Rio de Janeiro, uma escola privada católica. Os pais pressionaram a escola, alegando que o conteúdo do livro era nocivo e que fazia apologia ao comunismo.

Nos três casos, o que se observou, acima de qualquer coisa, foi desconhecimento sobre o conteúdo dos livros e um julgamento apressado. As pessoas que opinaram nas redes sociais, concordando com a censura a esses livros, chegaram ao menos a tê-los em mãos? O próprio prefeito, no primeiro caso, leu o livro que considerou impróprio?

Claro! No primeiro dos três exemplos, usou-se também uma estratégia para agradar a uma base eleitoral preocupada com pautas identitárias e camuflar os problemas reais da cidade. Essa também talvez tenha sido a censura menos bem-sucedida, pois, além de elevar as vendas do livro, conseguiu fazer o tal desenho ser propagado por inúmeros jornais, sites e perfis de redes sociais (ou seja, uma imagem que provavelmente seria vista por um pequeno número de pessoas foi vista por milhões).

Um dos grandes prejuízos dessa patrulha sobre os livros infantis e juvenis é a sua possível interferência negativa no processo de produção das obras literárias (não no caso da Bienal, que provocou efeito contrário), pois, para agradar ao mercado ou aos editais de programas governamentais de compras de livros, as editoras podem optar por não publicar textos com temas polêmicos. Com isso, os escritores e ilustradores podem restringir suas produções à temática aceita. E veremos a nossa variedade de livros se estreitando.

Nas três situações (e em outras tantas que acontecem até de forma mais velada), acredito que impera o medo (um medo um tanto irracional) das transformações pelas quais nossa sociedade passou e vem passando, o medo do desconhecido (o comunismo, por exemplo), o medo de levar às crianças e aos jovens temas com os quais também não sabemos lidar bem (como o suicídio).

Acho que muitas pessoas estão apegadas a uma forma de vida que não cabe mais nos dias atuais e estão se deixando levar por discursos que tratam de forma extremamente negativa as mudanças. Se parassem para refletir por um minuto, veriam que esse medo não tem razão de ser, pois o que pode haver de danoso em grupos minoritários quererem se ver representados em obras literárias? O que há de tão nefasto em um livro que mostra a diversidade?

Há outro medo que ninguém esconde: o de as crianças e os jovens imitarem aquilo que virem nos livros. Mas acredito que esse seja um temor precipitado, já que, como Hunt (2010) nos lembra: as crianças e os jovens, como qualquer leitor, produzem seus próprios significados das leituras, mesmo que queiramos interpretar as histórias para eles. Isso quer dizer que não dá para saber que sentido as crianças e os jovens retirarão de um livro, não dá para prever que efeito um texto literário pode gerar em uma criança ou em um jovem (ou mesmo em um adulto).

Hunt (2010) diz ainda:

Assim, não só os alvos ‘visíveis’ do sexo, raça e classe tendem a ser invisíveis para a criança-leitora — a menos que queiramos que sejam visíveis — como também o texto aparentemente inocente, desejável, pode transmitir sentidos que corrompem e que não conseguimos perceber (p. 206).

Sei bem o perigo que os livros representam para muita gente. Como eles levam a pensar, no meio desse pensamento todo, as crianças e os jovens podem questionar as certezas que são passadas como absolutas, podem descobrir que o mundo não é e não precisa ser como os mais velhos querem impor.

Especificamente sobre isso, tenho um exemplo pessoal: quando foi publicado O código da Vinci (2003), de Dan Brown, ouvi, na igreja católica que frequentava, que aquele livro nos era proibido (e isso era declarado assim, abertamente, durante a celebração da missa). O motivo era sua história alternativa sobre Jesus Cristo e Maria Madalena. A mesma coisa era dita sobre os evangelhos apócrifos.

Eu era adolescente à época, mas não era muito contestadora e era fiel aos preceitos católicos. Por isso, apesar de reconhecer uma espécie de censura ali, jamais me passou pela cabeça ler o livro (e até hoje não o li). Eu imaginava que algo naquela leitura poderia me levar a duvidar das crenças que levava comigo por anos. Então tinha medo até de pensar nela.

Hoje enxergo que não pensar era exatamente o que se desejava de mim e de todos. Sempre que alguém questionava alguma passagem bíblica, algum dogma, recebia imediatamente um olhar torto ou uma resposta pouco simpática, como se seu questionamento o tornasse a própria encarnação do diabo.

Então, para concluir, faço três perguntas a mães e pais (ou outras pessoas que exercem esse papel ou se preocupam com a formação das crianças e dos jovens):

  1. Desejamos que nossas crianças e nossos jovens sejam pensantes, críticos e questionadores?
  2. Desejamos que nossas crianças e nossos jovens aprendam a encarar, com naturalidade, com mais informação e com menos receio do que nós, aqueles temas que consideramos difíceis, como sexualidade e morte?
  3. Desejamos que nossas crianças e nossos jovens conheçam a diversidade de vidas humanas e respeitem outros pontos de vista e outras formas de viver?

Às mães e aos pais que conseguiram dizer “não” a essas três perguntas, deixo uma última reflexão: devem existir inúmeras mães e inúmeros pais por aí que desejam aos filhos tudo isso que citei. Pensando assim, parece correto, justo e democrático usar a opinião, as crenças e os medos de um grupo (seja religioso, político ou outro qualquer) como pretexto para privar as demais pessoas do acesso a livros, como aconteceu nos casos de censura mencionados anteriormente?


Referências:

FARIAS, Fabíola. O perigo da censura: medo dos livros se reinventa todos os dias. Estado de Minas, 19 abr. 2019. Pensar. Disponível em: <https://www.em.com.br/app/noticia/pensar/2019/04/19/interna_pensar,1047439/o-perigo-da-censura-medo-dos-livros-se-reinventa-todos-os-dias.shtml>. Acesso em: 14 set. 2019.

HUNT, Peter. Crítica, teoria e literatura infantil. São Paulo: Cosac Naify, 2010.

PRADES, Dolores. Politicamente incorreto. Publishnews, 23 abr. 2012. Disponível em: <https://www.publishnews.com.br/materias/2012/04/23/68037-politicamente-incorreto>. Acesso em: 14 set. 2019.

confira esses posts relacionados

Deixe seu comentário

© 2024 Histórias em MimDesenvolvido com por