28 de dezembro de 2018

2 Comentários

Cartas para Marilu (n° 5)

Por Eriane Dantas

Sábado, 29 de junho de 1985.


Marilu,


Fiquei admirada com a notícia do início de seu namoro com o filho do amigo de seu pai. Como minha pequena menina poderia estar pensando em amor? Mas é hora de enxergar a realidade: como eu disse na primeira carta, você se transformou em uma bela moça. Aquela garotinha que caminhava para lá e para cá abraçada a um urso de pelúcia não existe mais, a não ser na minha memória, embora não pareça fazer tanto tempo que ela se foi.

Por falar nisso, você se lembra do Dudu? Era o urso de pelúcia mais feio que já se tinha visto, mas você mesma o havia escolhido ao avistá-lo nas mãos de um vendedor de rua. Dudu logo se tornou seu melhor amigo. Dormia ao seu lado toda noite e a ajudou a enfrentar o medo do escuro. Era o único que a acalmava quando estava doente. Ele se sentava conosco à mesa de jantar, ia a qualquer passeio e testemunhava todos os nossos momentos. Era, afinal, parte de nossa família.

Ontem vi uma menina de cabelos castanho-escuros encaracolados com um ursinho caolho no colo. Estava na praça com a mãe, que tentava persuadi-la a trocar o urso velho por um novo, ainda na caixa. A criança chorava e dizia frases incompreensíveis, enquanto a mãe não entendia por que a filha não aceitava uma troca aparentemente vantajosa. Eu sim compreendia: aquele urso era mais que um brinquedo para a menina e, apesar de ela não saber explicar com palavras, seu choro dizia que jamais abandonaria o antigo amigo por um detalhe sem importância.

Veio à lembrança o dia em que tínhamos estado naquela mesma praça e, por um descuido, focadas nos sorvetes em nossas mãos, deixamos Dudu para trás. Você não demorou a sentir falta dele e então começou a chorar com desespero, como se se sentisse culpada por não ter cuidado bem do amigo. As pessoas ao redor paravam e perguntavam o que havia de errado com você.

Retornando à praça, não o encontramos e sua tristeza aumentou. Levou tempo para você esquecê-lo. E eu, à época, não valorizei sua dor, tentando fazê-la entender que aquele fato não era tão grande como você sentia, convencê-la a ocupar o espaço com outro brinquedo qualquer. Hoje me arrependo de não ter me colocado em seu lugar. Hoje entendo o que é perder parte de nós mesmas. E me flagro pensando naquele urso, pois era certo que onde ele estivesse eu encontraria você.

Antes de escrever esta carta, fui novamente à praça e observei mãe e filha outra vez. A menina tinha convencido a mãe de sua satisfação com o urso de pelúcia imperfeito. Por um instante, pensei estar vendo você, com seu sorriso que me fazia desculpar qualquer de suas travessuras e concordar com seus pedidos, mesmo o de levar para casa um urso esquisito.

Olhando para aquela menina tão parecida com você, percebi que perdi mais do que imaginava. Vendo-a apenas a distância e recolhendo aqui e ali fragmentos de sua história, não notei quando o interesse daquela menina migrou do urso de brinquedo para um rapaz. Você cresceu e eu não acompanhei, não estava ao seu lado quando descobriu sua primeira paixão e não fui eu quem você procurou para relatar seu primeiro beijo.

Não pense que não estou contente por você. Apesar de ter me surpreendido no primeiro instante e me ressentido por não estar aí vivenciando essa etapa com você, estou radiante por sua experiência, como se eu mesma a tivesse vivido. Aqui dentro, porém, você sempre será aquele bebê rechonchudo ou aquela menina apaixonada pelo urso de pelúcia.


Com amor,

Neusa

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2 Comentários

  • Eliete
    28 dezembro, 2018

    Emocionante essa carta.
    Obrigada por partilhar ❤️

    • Eriane Dantas
      03 janeiro, 2019

      Obrigada você, Eliete, por mais essa visita!

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