20 de agosto de 2019

2 Comentários

Cartas para Marilu (n° 6)

Segunda-feira, 1° de julho de 1985.


Minha querida filha,


No dia em que enviei a última carta, a observei caminhando para a escola, dessa vez sozinha, com uma expressão séria e um olhar difícil de interpretar. Parecia que seus olhos contemplavam algo que não se encontrava ali, algo que eu não via. O vento bagunçou seus cabelos, e você tentou reordená-los com uma mão, enquanto a outra segurava uma pequena pilha de livros, que caíram e se espalharam pelo chão. Por um instante fantasiei, presunçosa, que sua aparente tristeza tivesse relação com minhas cartas, com nossa separação, com a falta que faço em sua vida. Quis me aproximar, ajudá-la a recolher os livros, ajudá-la a carregar a preocupação que parecia mais pesada que suas forças de menina. Porém, no minuto seguinte, percebi a tolice da ideia. O medo dominou meu corpo, me impedindo de dar um único passo. Não sabia como você me receberia e me mortificaria com seu desprezo.

Sempre que posso, espero no mesmo lugar e no mesmo horário, apenas para admirá-la de longe e imaginar que um dia nos sentaremos juntas no banco da praça — aquela onde estivemos tantas vezes, aquela onde esquecemos o Dudu anos atrás. Em um desses momentos de vigilância, você olhou em minha direção, como se visse através de mim. Foi aí que notei que não sou mais que uma estranha para você, quero dizer, sou como uma daquelas pessoas que sequer enxergamos, embora passem por nós diariamente na rua.

Nesse dia, voltar para casa foi uma tarefa custosa, mesmo que o caminho fosse igual ao de todo dia. Minhas vistas embaçaram e um peso parecia me prender ao chão. De repente, esqueci até mesmo em que sentido deveria seguir. Não era o medo que me governava, mas a infelicidade de me descobrir invisível aos olhos da minha própria filha.

Não quero que os últimos parágrafos a tenham levado a deduzir que estou magoada com você ou que a culpo por não me reconhecer. Meu lado emotivo, por vezes, trapaceia e chega na frente aos meus pensamentos. Apesar disso, ainda que ele tenha me induzido a me surpreender com minha invisibilidade e a me sentir injustiçada, foi à minha racionalidade que dei ouvidos quando me recuperei daquele baque. Ela me disse, sem piedade, que não tenho direito de lamentar a situação ou de ter expectativas quanto à sua acolhida. Mesmo que isso não tenha diminuído o meu pesar, admito que meu destino fui eu mesma quem escolheu e que, portanto, sou a única responsável pelo nosso distanciamento. Você, minha filha, não tem culpa alguma disso e não poderia mesmo se lembrar de mim.

Não comentei nas cartas anteriores que uma informação sobre você redobrou minha fé em sua felicidade. Soube que seu principal sonho é ser professora — um sonho diferente daqueles que me moviam na sua idade: ser esposa e mãe. Não digo que eram ruins, mas existiam outras possibilidades que eu não conhecia naquela época. Quando desejei uma delas, mais tarde, precisei abandonar meus primeiros sonhos. Por isso, nenhuma notícia a seu respeito poderia ter me deixado mais realizada. Sei que seu futuro será distinto do meu: você terá a chance de ir mais além, de vivenciar outros papéis, sem ser obrigada a renunciar a um pedaço de si mesma.


Com amor,

Neusa

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2 Comentários

  • Eliete
    20 agosto, 2019

    Que emocionante! Simplesmente tocante. Obrigada por nos agraciar. Parabéns

    • Eriane Dantas
      23 agosto, 2019

      Muito obrigada, Eliete! 😉

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