O artista é o criador de coisas belas. Revelar a arte e ocultar o artista é a finalidade da arte (p. 5).
Hoje vamos falar sobre um clássico polêmico (como todo bom clássico), que, mesmo com o passar do tempo, não pode ser considerado ultrapassado. As reflexões que suscita são tão atuais como o eram no momento de sua produção.
Único romance de Oscar Wilde, O retrato de Dorian Gray teve sua primeira edição em livro em 1891, mas já havia sido publicado pela revista britânica Lippincott’s Monthly Magazine, com a supressão de palavras do original. Mesmo com essa censura, o texto foi considerado imoral, e, em resposta, Wilde escreveu um prefácio no qual defende:
Não existe livro moral ou imoral. Livros são bem escritos ou mal escritos. Isso é tudo (p. 5).
Se, por um lado, o romance alçou Wilde ao sucesso, também o colocou no centro de severas críticas e escândalos, sendo usado inclusive como prova de sua inadequação à sociedade (isso porque era homossexual). Wilde viu então sua fama decair ao se apaixonar por Alfred Douglas, perder uma ação por difamação contra o pai deste e ser condenado a dois anos de reclusão por atos de flagrante indecência.
O livro narra a história de Dorian Gray, um jovem tímido, bonito e inconsciente do fascínio que provoca nas outras pessoas até conhecer o Lord Henry Wotton, um aristocrata que defende a vaidade e o gozo da vida com plenitude. Para o Lord, Dorian deveria aproveitar ao máximo sua juventude e tirar vantagem de seus atrativos físicos.
“[…] O objetivo da vida é o autodesenvolvimento. Realizarmos a nossa natureza com perfeição — é para isso que cada um de nós está aqui. Hoje em dia as pessoas têm medo de si mesmas. Esqueceram-se da mais elevada das obrigações, a obrigação que cada um deve a si próprio. Naturalmente, são caridosas. Alimentam os famintos, vestem os mendigos. Porém suas próprias almas morrem de fome e estão nuas […]” (p. 26).
Inicialmente Dorian nega as palavras do Lord, mas logo muda a forma como vê a importância da beleza e da juventude. Apesar de já ter ouvido elogios de Basil Hallward, um pintor encantado por sua aparência, é por influência do Lord que Dorian passa a admirar a própria beleza e a desejar possuí-la eternamente.
Nesse ponto, observa-se a influência (boa ou ruim) que as pessoas ao nosso redor exercem em nossas vidas, o poder de suas palavras sobre nós e nossa personalidade. “Palavras! Simples palavras! Como eram claras, vívidas e cruéis! Não era possível fugir delas. E no entanto que magia sutil havia nelas!” (p. 28). Ao escutar as ideias do Lord (ditas de modo tão convincente), Dorian começa a construir uma nova autoimagem e uma nova personalidade. Então, apegado à beleza e à juventude, Dorian faz o infame pedido de trocar de papel com seu retrato pintado por Basil.
“Como é triste!”, murmurou Dorian Gray, com os olhos ainda fixos no próprio retrato. “Como é triste” Eu vou ficar velho e horrendo e medonho. Ele jamais envelhecerá além deste dia de junho… Se pudesse ser diferente! Se eu permanecesse sempre jovem e o retrato envelhecesse! Por isso — por isso — eu daria tudo! Sim, não há nada em todo o mundo que eu não daria! Daria a minha alma por isso!” (p. 35).
E seu desejo se concretiza. No primeiro instante, ao ver que seus pecados recaem sobre o retrato e não sobre si mesmo, Dorian se envergonha e esconde o quadro. Com o tempo, porém, passa a considerar conveniente não sofrer com as marcas de suas faltas ou do tempo.
A todo momento, mesmo que seja atingido por um conflito ou certa culpa por seus erros, Dorian é confortado pela ideia de não ter suas perversidades castigadas ou, às vezes, descobertas. Embora cometa os piores atos e cause a ruína de homens e mulheres, Dorian permanece intacto atrás da imagem jovem, bela e pura enquanto seu retrato se deteriora.
Essa é uma alusão à nossa capacidade de agir sem refletir sobre as consequências de nossas atitudes na vida dos outros quando sabemos que não haverá consequências na nossa própria vida (se ninguém descobrirá e eu não serei punido, que mal haverá?).
O livro também leva à reflexão sobre a importância da beleza e da juventude na sociedade atual, podendo alguém como Dorian Gray alcançar seus desejos apenas com esses dois atributos, inclusive mudar (negativamente) a vida de outros e sair ileso de qualquer erro, pois mesmo os que desconfiam de Dorian e não aceitam estar em sua presença não o encaram e fazem vista grossa a seus atos.
Brilhante, a obra revela com fidelidade a essência humana. Somente dois pontos, entretanto, incomodam no texto. O primeiro são os longos diálogos que não fazem sentido para mim (mas podem ser justificados pela época em que foram escritos e por serem realizados por membros da aristocracia britânica). O segundo é a exaustiva descrição dos prazeres de Dorian Gray, que, em certos trechos, pareceram mais enfadonhos do que prazerosos (como colecionar pedras preciosas).
Por outro lado, chama a atenção a descrição da beleza do protagonista, que permite confiar que Dorian é tão deslumbrante como o narrador afirma — o que nem todo texto consegue fazer, pois não é simples descrever pessoas e suas qualidades, caindo-se, muitas vezes, na superficialidade ou no exagero.
Deixe seu comentário