E aos poucos, em meio às verdades-mentiras que tinha inventado, Lumbiá ia se descobrindo realmente triste, profundamente magoado, atormentado em seu peito-coração menino (p. 83).
Nunca uma capa e um título disseram tanto sobre como o leitor se sente ao mergulhar nas histórias de um livro.
Olhos d’água é uma coletânea de contos publicada originalmente em 2014 por Conceição Evaristo, uma mulher negra, ex-moradora de uma favela em Belo Horizonte, que só concluiu o curso normal aos 25 anos de idade.
É admirável que eu nunca tenha ouvido falar nela até o dia em que soube que esse livro seria discutido no encontro de maio do Leia Mulheres Brasília. Como nunca tinha escutado esse nome? Como nunca tinha ouvido uma menção sequer a uma mulher com essa história, com essa capacidade de poetizar as dores? Ou será que não havia me atentado, não havia olhado nessa direção?
Como discutido no grupo, pode-se dizer que destacar a cor da pele de Conceição Evaristo ou sua antiga situação social, como fiz aqui, é comunicar aos outros que essas características são mais relevantes que seu talento. Outros dirão que o destaque a esses pontos pode ser usado como comprovação da igualdade de oportunidades e na desqualificação daqueles que, em iguais condições, não alcançaram o mesmo sucesso. Concordo com esse risco, mas não tenho dúvidas de que a origem da autora é importante e deve ser mencionada, pois foi ela quem deu base para essa mulher ser quem é e escrever como escreve. E que descrédito há em falar quem ela é e de onde veio? Quantas mulheres com essa biografia conseguiram chegar aonde ela chegou? Para quantas deixamos de olhar, focados apenas nos autores e nas autoras que o mercado nos aponta?
De repente, enquanto lia o livro ou após concluí-lo, vi o nome dela em todos os lugares: numa futura curadoria na TAG Livros, na programação de feiras do livro e numa possível indicação para a Academia Brasileira de Letras (ABL) — uma indicação que seria mais que acertada, a julgar pelo pouco que li da obra da autora (apenas o livro em questão). E só tenho a agradecer às mulheres do Leia Mulheres Brasília a oportunidade de conhecer essa autora. Se não fosse pela escolha do grupo, meu primeiro encontro com Conceição Evaristo correria o risco de não acontecer.
Além desse livro, estão entre suas obras os romances Ponciá Vicêncio (2003) e Becos da memória (2006) e outro livro de contos chamado Insubmissas lágrimas de mulheres (2011).
Olhos d’água traz quinze contos com diferentes personagens, quase todos eles com a mesma situação social: são moradores da favela ou pessoas em situação de rua, o que não torna suas vidas iguais. Cada um tem sua própria história, suas angústias, suas frustrações e suas expectativas. Aqui o enfoque não é dado à pobreza ou à condição de morador da favela em si, mas àquilo que está em volta ou que se origina dali: pode ser alguém que detesta a própria vida ou alguém que tem apenas um desejo simples: ver o menino Jesus em um presépio ou ser amada.
O livro apresenta pessoas normais, que lidam diariamente com seus problemas, seus conflitos e suas alegrias; pessoas que são levadas (ou empurradas), por sua situação social, a fazer suas escolhas. Conceição Evaristo não explora a guerra entre policiais e traficantes, como estamos acostumados a ver em histórias sobre o tema, não separa os personagens em maus e bons, não os coloca em posição de vítimas, mas de escritores de sua própria trajetória.
Um bom exemplo é Natalina, que, mesmo tendo trazido três filhos ao mundo, sente-se mãe de verdade apenas na quarta gravidez, embora essa tenha se originado de uma situação violenta, porque, a despeito dessa contradição, agora o filho seria todo seu (sem as marcas de outro alguém) e não a obrigaria a se unir (se prender) a outra pessoa. Aquele bebê em seu ventre é também a lembrança de sua escapada da morte. Natalina certamente seria chamada de desnaturada na vida real, por ter abandonado os outros filhos, mas é apenas uma mulher ciente de suas possibilidades.
Era a sua quarta gravidez, e o seu primeiro filho. Só seu. De homem algum, de pessoa alguma. Aquele filho ela queria, os outros não. Os outros eram como se tivessem morrido pelo caminho (p. 41).
Olhos d’água fala da realidade conhecida de todos pelos telejornais ou pelo cinema — uma realidade que pensamos conhecer, mas da qual, ao ler esse livro, percebemos que estamos tão distantes. E Conceição Evaristo quer exatamente nos fazer enxergar essa realidade e o faz de uma forma que torna impossível virar o rosto.
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